domingo, 6 de dezembro de 2009

A ESCRITA DOS ANOS 80 DAS ESCRITORAS BRASILEIRAS

Quando estava cursando o doutorado, me interessei pelas produções das escritoras da geração de 60, sobretudo me chamava a atenção as produções publicadas nos anos 80, quando elas estavam na maturidade, lá pelos 40 anos.

Helena Parente Cunha (Mulher no Espelho, 1985), Sonia Coutinho (O Jogo de Ifá, 1980), Myriam Fraga (Risco na Pele, 1983), Marina Colasanti (Contos de Amor Rasgados, 1986),  Lya Luft (Retratos de Família, 1987) e Yêda Schmaltz (Atalanta, 1987). O que há em comum entre esses textos além do ano de publicação e o fato de todas serem mulheres?

Resposta: Os temas e a linguagem. Naturalmente observando-se as particularidades de cada escritora.

Apesar de pertencerem a gêneros diferentes - poesia, conto, microconto, romance - a linguagem utilizada pelas escritoras produz um efeito impactante na(o) leitor(a) dada a maneira como elas expõem questões difícieis de falar, pois são vistas como interditos sociais e que por serem assim causavam problemas nas relações das mulheres com o espaço familiar. Pensemos no título do livro de poemas de Myriam Fraga publicado em 1983 - Risco na Pele. Duas palavras e um mundo de significados: o risco que remete a uma marca, um esboço, um risco, mas que também representa perigo. A pele é o que reveste o corpo, em sentido metafórico é a "própria pessoa", portanto liga-se a um sentido de identidade. O risco na pele pode significar o perigo que esse corpo marcado pelo sexo e pelo gênero vive. Os riscos de ser mulher, essa marca na pele que se movimenta em terrenos movediços e inóspitos, lançando-se, arRISCAndo-se a cada passo. Pensemos nos vários perfis de mulheres trazidos por Sonia Coutinho e que mostram as disfunções e insatisfações vividas pelas mulheres seja dentro ou fora do código social. Pensemos na narrativa de Lya Luft que em seu livro Reunião de Família mostra-nos a violência patriarcal e as sequelas deixadas na memória das pessoas que agem na loucura ou recuadas com medo. Pensemos na opressão da mulher em a Mulher no Espelho de Helena Parente Cunha e da sua dolorosa consciência e transformação para uma vida mais livre e independente. Pensemos em Atalanta, de Yêda Schmaltz, e as revelações de uma personagem infeliz em seu casamento e ávida por liberdade. O dilema de Atalanta é atualizado, pois, segundo a mitologia, a deusa perdeu a corrida porque sentiu-se atraída pela beleza dos pomos de maça colocados em sua frente, fazendo-a retardar-se e perder a corrida. Seria hoje ainda um problema para as mulheres? Preocuparem-se com questões que seduzem os olhos, fazendo-as perderem o foco?

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

FÊNIX

O texto abaixo é uma prosa poética escrita por Myriam Fraga e um dos meus favoritos. É um canto de sobrevivência para aqueles e aquelas que lutam diariamente e precisam se fortalecer na própria adversidade. Em especial, para as mulheres que são abatidas, violentadas, desamadas em nossa sociedade, somente com um mergulho em suas profundezas poderão tirar de dentro de si forças para prosseguir... vivas.


Myriam Fraga


Renasço a cada dia. A cada manhã, renovo minhas penas. Ontem, foram as brasas. Meu corpo frágil, meu ser de indecisa textura, ardeu em chamas, devorou-se, inteiro, ao calor de sua própria fogueira. No fim, restou um pouco de pó, mornas cinzas escuras. Mas ao romper da manhã, os carvões se agitaram. Débil ruflar de asas, um espichar de remígios e, novamente pássaro, me ultrapasso. Para o alto, para o alto! Atrás são cinzas mortas, pó desfeito, uma pequena coivara onde crepitam, ainda, rescaldantes, os restos do braseiro.


Aos poucos, lentamente, recupero os sentidos. Aos poucos, lentamente, reaprendo os caminhos. Me oriento devagar pelas velhas pegadas. Aqui, sem dúvida, já estive. É meu este traço, este espalmado rastro. Sinto que há ainda em mim um vestígio de abismo. Um chamuscado leve, uma fina cicatriz no encontro das asas. E uma lembrança quase morta, uma recordação abafada da ferroada das chamas, do dilacerante calor brotando das entranhas.


Mas, renasci. Renasço todo tempo. E meu tempo é este constante oscilar, este pêndulo esticado entre o toque de morrer e a hora do resgate. Ainda há pouco eu era apenas um montículo de pó, resíduos calcinados. Mas uma nova força revive de minhas brasas, asas soltas no espaço.


Agora, o céu é meu. E todo este dia glorioso, com seu hálito de jasmins, com seu sopro de plumas. Meu é este dia, o espaço deste dia. E a força de viver bate forte nas veias. Respiro com prazer e me engolfo no vento. Mais uma vez retomo meus cantares. Mais um dia! Mais um dia! Sei que breve, de novo, morrerei. Sei que nova mortalha de pó e cinza velará a minha face. Outro fogo me espera, outro mergulho ao cerne da fornalha.


Mas, agora, me equilibro na força de minhas asas. Todo o horizonte me pertence, tudo que embaixo respira e se renova. Ventos brandos do céu, arco-íris, auroras. Um dia, de novo, enfrentarei o holocausto. E novamente arderei até a poeira final, o restolho, o borralho. Mas não importa. Sei que tudo isto é apenas passagem. E renascerei de novo de minhas cinzas. Íntegra e radiante para novas batalhas.


Fonte: http://www.atarde.com.br/materia.php3?mes=03&ano=1998&id_materia=113327. Coluna Linha D'Água do Jornal A Tarde.

domingo, 1 de novembro de 2009

Helena Parente Cunha: díálogos revolucinoários com a América Latina através dos microcontos

"El éxito del microcuento se da cuando logra impactar al lector, cuando lo mantiene en un éxtasis de reflexión y de entrega consigo mismo" (autor desconhecido)

Os microcontos são, estruturalmente, narrativas condensadas e que pelo seu traço sintético e simbólico se aproxima bastante do poema. Nos microcontos as palavras sugerem mais do que dizem e, por isso, são formados por forte carga simbólica. O microconto, como afirma Massiel Mossos, é um gênero que nos mostra uma nova perspectiva do texto, nos conduz a diferentes labirintos que visa entreter e manter o leitor em interação contínua. Por utilizar o mínimo de palavras para expressar idéias só pode ser significado por aquele que queira jogar com a palavra e o pensamento.

O componente lúdico do microconto - que evidencia muito mais o papel do leitor, responsável por percorrer o labirinto e construir as significações - associado a sua estrutura condensada, não ultrapassando uma página, fortemente imagético, remete-nos também às artes plásticas. Aliás, a plasticidade dos microcontos confere a estes uma identidade híbrida, polissêmica, parafrástica e intertextual, mostrando-nos, muito claramente, a carga dialógica, ideológica e expressiva nas escolhas combinatórias das palavra. É por meio desse elemento que a leitora e o leitor produzem os sentidos, isto é, faz uso da sua experiência perceptiva, da sua visão de mundo para dizer o que não foi dito, mas sugerido. Por isso, os microcontos são revolucionários, pois exige do leitor e da leitora uma ação, uma desacomodação.

Helena Parente Cunha, dialogando com escritores e escritoras dos países da América Latina e por conta de sua habilidade em transitar com tranquilidade entre a prosa e a poesia, soube muito bem produzir microcontos, combinando elementos da prosa e da poesia, para tematizar questões relacionadas às experiências das mulheres. A escolha não poderia ter sido melhor para provocar uma desacomodação nas leitoras e manter com elas um diálogo, pois através da revolução estrutural, Helena Parente Cunha trouxe também, colado à estrutura, temas igualmente libertários e emancipatórios que falam muito da vivência das mulheres. Essa tematização provoca uma reflexão, um pensar das mulheres sobre si mesmas, como mencionado na epígafre, possibilita às leitoras o encontro delas com suas experiências, com a experiência política de ser mulher, pensando-se individualmente e para fora de si, tomando consciência de sua existência e a de tantas outras existências de mulheres.


INDECISÃO

Todas as noites. A respiração acelerada. O corpo junto do corpo. A boca dentro da boca. Os braços se fundindo nos braços. As pernas atravessando as pernas. As mãos incutindo espaços. O buscar de mais buscar. O corpo querendo entrar. O corpo pronto a acolher. O arfar. A espera. A sede, a rede. A parede. O corpo querendo entrar. Um corpo que se fechando. Não. Não. Ela se solta, ela se assalta, ela se volta. Ele revolta. Não. Desta vez ele vai para nunca mais voltar. (destacados por mim)





sexta-feira, 30 de outubro de 2009

A POESIA DE HELENA PARENTE CUNHA

Helena Parente Cunha é bastante conhecida por sua prosa - Mulher no Espelho, Cem Mentiras de Verdade, As Doze Cores do Vermelho, Os Provisórios, Claras Manhãs de Barra Clara - narrativas que já lhe trouxeram premiações. No entanto, trago hoje uma poesia publicada em seu livro Além de Estar, lançado em 2000, pela Fundação Cultural do Estado da Bahia e Editora Imago. O poema recebeu o título de Verdade.

no desmentir
de cada mito
me tomba um véu

no desencontro
de cada aurora
rompo um pedaço

no que refaço
cada verdade
mais me desfaço.

Esse poema me chamou a atenção pelo seu propósito desconstrucionista e desmitificador. Longe de aceitar a identidade como algo acabado, fixo, a voz que enuncia se apresenta reflexiva e consciente do jogo de mentiras e verdades, do mascaramento, por meio do qual as pessoas vivem socialmente. O véu, símbolo feminino, usado para ocultar a face da mulher, portanto a sua identidade, com o passar do tempo vai sendo retirado, levando a mulher a se defrontar com a verdade. Mas o que é a verdade? A verdade e a mentira não são feitas da mesma substância? A diferença, a meu ver, é que a voz feminina constrói para si aquilo que ela considera como verdade sobre ela mesma. A mentira é o que foi dito sobre a mulher e que ela rejeita, tem uma relação de "desencontro". A verdade, ao contrário, é tudo aquilo que ela define para si mesma como pertencimento e por meio da qual ela se afirma.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

A DAMA E O UNICÓRNIO


"Desenho o teu perfil
Como um bordado;
Matiz e labirinto.

Uma anca abaulada,
Um pé suspenso
E a cabeça
De encantado.

Passeias nos meus sonhos,
Nos meus bosques
De sombra e solidão.

Solitário também
E assustado:
Tão dedicado risco
A Senhora e o Unicórnio: "A visão
- Elfo e onagro. Fonte: wikipédia

Nunca virá a mim.
Por mais que espreites
(E te espreite)
Não virás.

Desejas no entanto
Meu regaço.

Mas nunca o terei nos braços.

... Nunca o doce
Calor de seu pelo,
Nunca o suave
Parafuso do chifre...

- Que linha furiosa nos separa?

Neste jogo de espelhos,
Divididos,
Nos buscamos em vão.

Não me escutas,
Nem voltas a cabeça.

Nem eu atiro o laço."

(Do livro FEMINA, 1996)


Quando li A Dama e o Unicórnio pela primeira vez estava no curso de especialização da UFBA e iniciando com mais profundidade os meus estudos feministas acerca das questões de gênero. Imediatamente elegi esse poema de Myriam Fraga como um dos mais "gendrados" de sua coletânea. O verso "-Que linha furiosa nos separa" mostra a grande separação que a cultura nos legou entre os pólos diferentes, o feminino e o masculino ou o homem e a mulher, num jogo binário e oposicional que sustentou (e tem sustentado) as práticas sociais no ocidente, levando as pessoas, mulheres e homens, a se rivalizarem ao invés de se perceberem, em suas diferenças, como apenas diversos.


No poema, o olhar reciproco, ou melhor o espreitar recíproco, traduz esse interesse mútuo, mas que se perdeu ou tem se perdido no estrabismo que embaça, produz o estranhamento mútuo. Espreitar significa observar às ocultas, prescrutar, sondar, observar atentamente e, por mais que as duas partes assim se comportem um em relação ao outro, uma "linha furiosa", forte e violenta, impede que dois universos distintos se vejam, se aproximem, se percebam e se entendam. O ocidente criou esse abismo dos gêneros através de diferentes recursos. Aqui a poesia de Myruam Fraga espreita o mito, o código literário ocidental, indaga-o e lança para o leitor a tarefa de pensar: "Que linha furiosa nos separa?"


A Dama e o Unicórnio nos lança ao mito dos encontros impossiveis, pois reza a lenda que o animal só se curvaria diante de uma virgem que em seu colo, ao adormecer, lhe tiraria o chifre. Isso significa que para que houvesse um encontro, um deles teria de perder a força. A narrativa ocidental mítica mostra que a força indomável é aplacada pelo gesto calmo da mulher que neutraliza a violência, representada simbolicamente pelo chifre quando ela o retira, para enfim poderem estar em equilíbrio. O ocidente distorce ainda o mito ao mostrar uma leitura invertida, mostrando que a mulher ao possuir o chifre passa a dominar o homem.


A poesia de Myriam Fraga questiona essas leituras hierárquicas nas relações e propõe uma reflexão sobre a ideologia que tem sustentado as relações desiguais de gênero que separa violentamente mulheres e homens, o feminino e o masculino, e, sobretudo, conferindo poderes a um.
Fonte: A imagem intitula-se "A Senhora e o Unicórnio - A visão"

domingo, 6 de setembro de 2009

MAIS UM POUCO DE EMILY DICKINSON

Observe no poema abaixo como as palavras liberdade (voar) e prisão fazem parte de uma angústia existencial da mulher que almeja sair da prisão dos códigos morais vigentes, tendo consciência da força que a oprime.


I never hear the word "escape"
Without a quicker blood,
A sudden expectation,
A flying attitude!
I never hear of prisons broad

By soldiers battered down,
But I tug childish at my bars
Only to fail again!
Emily Dikinson

TRADUÇÃO

Eu nunca ouço a palavra "escapar"
Sem sentir fremente o sangue
Nas veias, espera do de repente,
Atitude de voar!
Nunca ouço de maciças prisões

Em combates derrubadas
Sem ficar sacudindo as minhas grades,
Infantilmente - p'ra nada.

Emily Dikinson (Tradução: Aíla de Oliveira Gomes)
Enviado por: José P. Di Cavalcanti Jr.
Fonte: http://www.blocosonline.com.br/literatura/poesia/pidp/pidp010708.htm

BELEZA E VERDADE (EMILY DICKINSON (1830-1886)

Tradução de Manuel Bandeira

Morri pela beleza, mas apenas estava
Acomodada em meu túmulo,
Alguém que morrera pela verdade,
Era depositado no carneiro próximo.
Perguntou-me baixinho o que me matara.
– A beleza, respondi.
– A mim, a verdade, – é a mesma coisa,
Somos irmãos.
E assim, como parentes que uma noite se encontram,
Conversamos de jazigo a jazigo
Até que o musgo alcançou os nossos lábios
E cobriu os nossos nomes.
Há quem diga que poesia não foi feita para analisar, mas para senti-la e só. Mas como crítica que sou não posso me furtar ao exercício da interpretação e para tal necessito apresentar o contexto. Emily Dinckson nasceu na Inglaterra no século XIX, na chamada Era Vitoriana. Chamava-se assim por conta de um código moral implantado pela Rainha Vitória permeado de preconceito, repressão sexual e afetiva, sobretudo para as mulheres, cada vez mais enclausuradas em um mundo hipócrita de proibições e transgressões.
Nesse poema, o eu-lírico coloca em um mesmo nível a beleza e a verdade, ambas "irmãs", porque efêmeras e alimentadas pela vaidade humana. O fato de escolher um jazigo, fortalece o sentido da finitude das duas e a máscara que as reveste, ornadas para o outro, para seduzi-lo.
Se fizermos uma leitura a partir do lugar de fala da escritora, considerando o seu momento histórico e cultural, podemos identificar uma certa denúncia nesse poema, uma vez que a beleza, eleita pela sociedade patriarcal para ser cultuada pela mulher, é a razão da sua morte social, pois a acorrenta a um jogo de sedução que a imobiliza dentro de um construto da feminilidade a partir do olhar do homem, que por sua vez, para alcançar o seu intuito, constrói o seu discurso em torno de verdades. Essas verdades aparecem como discurso na sustentação de uma ideologia patriarcal mascarada.