domingo, 12 de fevereiro de 2012

DONA BARATINHA, de Ana Maria Machado - FTD

À memória da professora Doralice Alcoforado, professora da UFBA, pesquisadora incansável da literatura oral

Peter Hunt, um dos teóricos e críticos contemporâneos da Literatura Infantil, traz uma questão em seu livro, entre várias, com a qual concordo, sobre a crítica literária atual: ela tem demorado a reconhecer  e a tratar a literatura infantil com seriedade por considerá-la um texto "menor", talvez refletindo a visão que o adulto tem da criança, principalmente quando se trata da sua instrução. Ana Maria Machado, uma das mais conhecidas escritoras, atual presidenta da Academia Brasileira de Letras, para a honra dos nossos "erês" e "curumins", nunca deixou de perceber a importância da formação literária na criança para o seu desenvolvimento, e sempre nos brindou com textos criativos e prazerosos de ler. O livro em questão foi ilustrado por Maria Eugênia.

O livro D. Baratinha, que chegou às minhas mãos por uma cortesia da Editora FTD, é um desses livros que, a meu ver, não poderia deixar de estar presente no pequeno acervo das crianças. O texto é um reconto da tradição oral portuguesa, muito embora saibamos que, em se tratando da literatura infantil, a sua origem está mesmo na cultura popular, nas narrativas orais, como discute Peter Burke em seu livro Cultura Popular na Idade Moderna.

Pesquisando na internet, encontrei o seguinte texto: 

A origem da clássica história da Dona Baratinha é incerta. O registro mais antigo é de 1872, intitulado "Histórias da Carochinha", manuscrito que se encontra na Torre do Tombo, em Lisboa. Era uma crítica às mulheres solteironas que procuravam conquistar seus pretendentes com suas fortunas. Falando principalmente de amor, o conto aborda também outros temas, como a solidão, a partilha, o respeito pela personalidade de cada um, contestando também o verdadeiro valor do dinheiro e do amor. "O Casamento de Dona Baratinha’’ é o primeiro conto infantil traduzido do português de Portugal para o Brasil publicado em “Contos da Carochinha”.
De fato, o ano coincide com o momento em que as nações estão se estruturando, em busca de "sua" literatura. O século XIX se caracteriza basicamente, do ponto de vista literário e político, pelo esforço dos intelectuais em definir os pertences do seu país, de inserir com veemência a discussão sobre a identidade nacional, um dos traços ideológicos da emergente burguesia. Com isso, além de uma estrutura macrossocial pautada no conceito de nação, o século burguês também redefiniu a estrutura microssocial, com a família nuclear, estabelecendo funções aos seus membros - pai, mãe, filhos ou, ainda, estabelecendo universos distintos entre adultos e crianças. É a partir deste século que a ideia de criança passa por uma transformação. 

Dona Carochinha chega até os letrados brasileiros não diretamente pela voz do povo, mas de sua adaptação literária do século XIX, portanto já transculturada, desembarcada nos portos brasileiros em forma de livro. Carocha é um tipo de besouro, é uma expressão mais usada pelos portugueses do que brasileiros, e refere-se a um escaravelho, que simpaticamente foi aproximado no Brasil contemporâneo e urbano para a nossa conhecida e familiar barata. 

O que há nesta história?  Antes de encontrar a citação acima, recontextualizei e achei a D. Baratinha uma personagem emancipada. Ela estava varrendo a casa quando achou uma moeda. Arumou-se, perfumou-se e foi para a janela propor casamento aos que se aproximavam, atraídos por seus versos: "Quem quer casar com D. Baratinha que tem fita no cabelo e dinheiro na caixinha?". Se no século XIX, a intencionalidade era criticar as solteironas endinheiradas, desqualificando-as ao chamá-las de interesseiras, até porque a solteirice não era bem vista na época, Ana Maria Machado retira o castigo da moral da história, que pune a mulher que não casa por amor, algo que contraria a ideologia burguesa patriarcal, e opta por uma visão mais positiva para as mulheres.

A D. Baratinha foi punida séculos antes porque racionaliza a sua situação e, empoderada, propõe casamento, submetendo os pretendentes a sua apreciação e não o inverso. Ela escolhe o seu marido. Eles também a procuram por interesse, mas o conto aburguesado retira o peso dos homens e coloca sobre as mulheres para que sejam subjugadas pelo discurso do amor romântico, desinteressadas pelas coisas materiais pelas quais apenas os homens deveriam se interessar. (Por que será?) Observe que a moral da história não pune o homem interesseiro, mas enfatiza a mulher interesseira. Como se ambos não tivessem seus ineresses.

Ana Maria Machado mostra que um sofrimento pode se transformar em uma aprendizagem e que as dificuldades existem para serem superadas. Dona Baratinha, na minha concepção, é uma personagem feminista porque é independente, tem consciência dos acontecimentos e, mais interessante, é uma mulher, ops, barata de personalidade forte que supera a dor da perda e se refaz. Por ser um reconto, apropria-se dos elementos de um primeiro texto, já recontado da tradição popular que, provavelmente já foi modificado, e insere elementos mais próximos do seu leitor atual que já não vê a solteirice como um problema, como no século XIX, mas como uma escolha. Afinal, as crianças de hoje precisam aprender a respeitar as diversas formas de viver em sociedade e com certeza elas devem ter algum parente ou vizinho solteiro. Dona Baratinha de Ana Maria Machado é um texto pedagógico, sem pedagogismos, e de grande riqueza literária, sem ser maçante.  Sobre este aspecto, falarei na próxima postagem, pois sei que textos em blogs devem ser curtos, o que é muito difícil para mim.  

Vale a pena ler e adotar Dona Baratinha de Ana Maria Machado.  

Fontes:
http://www.abckids.com.br/verconto.php?codigo=21
http://www.barry4kids.net/LER/PDF/conto_carochinha_pt.pdf
Ana Maria Machado