domingo, 28 de novembro de 2010

SONIA COUTINHO ATRAVÉS DOS SITES

Existem inúmeras desconfianças quanto ao uso das informações contidas na internet, contudo prefiro me dedicar aos usufrutos que as navegações ou velejamentos me propiciam, que incluem os riscos acometidos a qualquer viajante. O número infinito de dados que os sites de busca nos oferece nos impele a fazer seleções das informações que chegam aos nossos olhos, tornando a atividade por vezes demorada e cansativa, ao mesmo tempo em que motivadora e prazerosa.

Quando necessitei de material para compor um estudo sobre a produção de Sonia Coutinho e Helena Parente Cunha encontrei uma série de informações que, certamente, se não fosse a internet, não teria acesso, pelo menos, em tempo tão curto e de forma tão confortável. Pude acompanhar, por exemplo, dentre as atividades desempenhadas pelas duas escritoras, os livros publicados, as versões em outras línguas, os assunto nas palestras feitas em outros países e no Brasil, o estudo de suas produções em inúmeras universidades brasileiras e estrangeiras, as entrevistas, e muitos outros dados.

A internet é uma ferramenta imprescindível para a pesquisa e, consequentemente, para a ampliação do conhecimento, porque ela permite o acesso a um número vasto de informações que certamente de outra forma seriam difíceis de encontrar. Por exemplo, no site http://www2.metodista.br/unesco/jbcc/jbcc64.htm verifiquei uma referência sobre a escritora, citada em livro, quando se discutia a importância do movimento intelectual dos anos 50-60 na UFBA para a formação de intelectuais como Sonia Coutinho. Esse aspecto é importante para entender as condições de produção da escritora que não apenas inova a narrativa ficcional do ponto de vista da estrutura, mas apresentando temas igualmente inovadores ao discutir o patriarcado na Bahia e os seus efeitos da educação das mulheres de classe média alta. A instrução das mulheres sempre foi mencionada pelas feministas como sendo de extrema importância para a emancipação das mulheres e a produção de Sonia Coutinho mostra que essa instrução nos anos 60 inevitavelmente perpassaria pelos problemas das mulheres em uma estrutura social por meio da qual eram subordinadas ao poder masculino. As produções da escritora tiveram repercussão em Universidades dentro e fora do país.

Nas universidades localizadas fora do país, a produção de Sonia Coutinho tem sido estudada nas disciplinas que discutem a literatura latino-americana e, também, através de seminários. A crítica Andrew Bell da Universidade do Texas, Austin, apresentou um trabalho sobre a narrativa da escritora com o título "Sônia Coutinho: Narrating Woman" para um evento da American Portuguese Studies Association, no II Congresso Internacional, realizado na Univesidade de Wisconsin, Madison entre os dias 19 e 21 de outubro de 2000. Um outro evento, o Congresso Internacional sobre Escritoras Lusófonas, realizado nos dias 19 a 21 de maio de 1999, contou com os estudos da pesquisadora Susan C. Quinlan, da Universidade de Georgia, que apresentou o artigo "Re-Inventing Brazil: Women's Identity in the Works of Sónia Coutinho". Já o Instituto Brasileiro e Português da Universidade de Köhn produziu um estudo sobre o romance Os Seios de Pandora intitulado "Der weibliche Detektiv und das Verbrechen in Sonia Coutinhos "Os Seios da Pandora", Köln, em 22 de janeiro de 1999, discutindo as nuanças que diferenciavam o romance de detetives produzido por homens e mulheres. O interesse pelas produções de Sônica Coutinho partem de espaços e culturas diferentes, mas predominantemente anglo-saxão, inclusive a Alemanha.

Os cursos oferecidos pela Universidade de Havard em Língua Portuguesa sugeriram as produções de Sonia Coutinho para tratar da produção literária brasileira no período da ditadura militar enquanto textos dissonantes ao pensamento e escrita hegemônica. Um desses cursos, Portuguese Language Courses, foi ministrado pelo professor Nelson H. Vieira, e oferecido na Primavera de 2001 sob o título "The Cultural Politics of Brazilian Identity(ies): Post-64 Literature and Interrogations of Power, Ethics and Alterity"

Os jornais proporcionaram e veicularam igualmente estudos sobre os textos da escritora. O Jornal Hispania, Volume 82/4 de dezembro de 1999, na página 713, produzido pela Universidade do Texas, trouxe um artigo de Cristina Ferreira-Pinto Bailey intitulado "Sonia Coutinho: desconstruindo mitos de feminilidade, beleza e juventude" na seção "Articles on Language and Literature". O Jornal Literário Ploughshares, da Faculdade Emerson, lançou no inverno de 1985, no volume 11/4, uma edição com poesia e ficção na qual está presente o conto "Fatima & Jamila", página 233, do livro Uma Certa Felicidade. Já a revista Ficções, ano II - Número 4, 2º semestre/1999, com 108 págs. publica o conto "Marginal Light" de Sonia Coutinho do livro mais recente Os mil olhos de uma rosa.

A literatura baiana de autoria feminina passa a ser referência nos estudos da literatura brasileira dos centros universitários de vários países o que significa inserção cultural, apesar de ainda tímida, de um discurso não visível pela crítica literária. A literatura de Sonia Coutinho é estudada do ponto de vista feminista articulando a sua narrativa à discussão sobre as identidades sem perder de vista o contexto histórico.

A produção da escritora baiana também faz parte dos cursos de pós-graduação de algumas universidades, a exemplo do Department of Portuguese and Brazilian Studies que destacou a produção de Sonia Coutinho ao abordar noções sobre alta literatura, cultura aceitável e bom gosto na ficção contemporânea brasileira dos anos 60.

A pesquisa nos sites de busca mostra que a escritora Sonia Coutinho tem produzido também artigos de crítica para jornais do Rio, a exemplo de "O diário íntimo que Graciliano Ramos (não) escreveu", publicado no jornal O Globo, Rio de Janeiro, de 12 de setembro de 1981. Cad. B, p.9.,e o mesmo título de artigo em outra edição, 14 de novembro de 1981, página.5 e, também, "Duplicidade, multiplicação. Jogo de ‘Stella Manhattan’", no Jornal O Globo, Rio de Janeiro, edição de 17 setembro de 1985.

Sonia Coutinho escreveu ainda um artigo intitulado "Pioneira da ficção feminina" para o Jornal O Globo em 23 de maio de 1993 por ocasião do lançamento das obras reunidas de Teresa Margarida da Silva Orta. A escritora baiana, neste breve artigo, destaca o pionerismo de Orta em relação a outros escritores posteriores que obtiveram a visibilidade que a escritora não teve, além de apresentar parte de sua biografia permeada de desafios.

No Jornal do Commercio, em 1998, Caderno C, seção Família, a escritora deu um depoimento acerca do tema solidão: " Moro sozinha há quase 20 anos e não me imagino vivendo de outra maneira. É um estilo de vida. Não tenho mais que dividir espaço. Em alguns momentos posso me sentir sozinha, mas solidão a dois é mais traumática. Em meu novo livro, Os seios de Pandora (Editora Rocco), as duas personagens centrais são sozinhas e vivem bem. Acho que a partir dos anos 70 surgiu a mulher que se sustenta, que compete com o homem no mercado de trabalho, e no Rio de Janeiro há espaço para essa mulher. Uso a solidão para trabalhar, produzir mais." A solidão é tema que está presente nas narrativas mais recentes, mas, também nas suas primeiras produções.

A escritora também esteve representando o Brasil na Alemanha no III INTELI - Encontro Internacional de Escritores, juntamente com João Ubaldo Ribeiro e Rubem Fonseca, divulgando os seus trabalhos e ao mesmo tempo a literatura contemporânea brasileira em outros países.

As traduções é uma das atividades realizadas por Sonia Coutinho. Em 2007, a escritora traduziu Stella Adler sobre Ibsen, Strindberg e Checkov, organização de Barris Paris para a editora Bertrand Brasil. O livro tem 378 páginas e conta com a "transcrição de algumas lições de teatro que ela [Stella Adler] ministrou entre os anos 70 e 80." Outras traduções fazem parte do currículo da escritora: A dimensão oculta (The Hidden Dimension), publicado originalmente em 1966 por Edward T. Hall, e traduzido pela editora Francisco Alves em 1977; Os assassinato da Rua Morgue, de Edgard Alan Poe, publicado pela editora Sette Letras, no qual, segundo a sinopse publicada pelo site Submarino, foi quem introduziu a pergunta "quem matou?" nos romances do gênero policial que, muito provavelmente, ganhou um sentido feminista quando usada pela escritora para identificar as causas das mortes física ou simbólica das mulheres, a exemplo do romance Atire em Sofia, da escritora; O carne dourado (The Golden Notebook) de Doris Lessing, traduzifo juntamente com Ebreia de Castro Alves;  Ponto de Fuga [then ways of escape] de Graham Greene;  Mutações [Forandrigen] de Liv Ullmann; Machado de Assis: ficção e história, de John Gledson, 1986;  Passagem para a Índia, de de E. M. Forster, editado pela Nora Fronteira; Sun Tzu: A arte da guerra: uma nova interpretação, publicado pela editora Campus em 2001;  O misterioso Sr. Quin, romance policial de Agatha Christie, publicado pela L± O grande massacre dos gatos e outros episódios da história cultural francesa, de Robert Danton, publicado em 1986, pela Graal; Vagarosamente, ao vento, de Patricia Highsmith, publicado pela editora José Olympio; Marie Curie, uma vida, de Susan Quinn, publicado pela Scipione em 1997; Visser, Margaret - O ritual do jantar : as origens, evolução, excentricidades e significado das boas maneiras à mesa (Título original: The rituals of dinner), editora Campus, 1998; Sem Deixar Vestígios, de Charles Berlitz, 1990, traduzido do original em inglês Without a trace/1977.

 
Um fato que talvez pouco se saiba é que o conto Nascimento de uma mulher de Sonia Coutinho foi, durante a ditadura militar, desaconselhado pelo censor Walmir Ayala, membro da comissão de leitura e um dos responsáveis pela leitura de textos enviados para o Instituto Nacional do Livro, autarquia criada na época de Getúlio Vargas, a fim de serem reeditados através de um convênio entre as editoras e o INL. Vários intelectuais como João Ubaldo Ribeiro, Jorge Amado, Luiz Costa Lima, James Amado, Leandro Konder, Esdras do Nascimento, Margarida Ottoni, Armindo Trevisan, Moacyr Scliar, Paulo Coelho, Clarice Lispector, Sérgio Sant´Anna e outros tiveram suas produções julgadas e vetadas. A narrativa da escritora baiana foi considerada "incomodativa" no plano sintático e temático, embora este último aspecto tenha sido suavizado pelo primeiro para dar a impressão de uma não intencionalidade ideológica formal, desvinculando o que para muitos críticos hoje é indissociável: a forma e o conteúdo do texto.

Vejamos o parecer sobre o conto de Sonia Coutinho, acrescido de uma nota :


OBRA: Nascimento de uma mulher
AUTOR: Sônia Coutinho
CENSOR: Walmir Ayala
DATA: ?/?/1970
PARECER n.º 57
Apesar de certas formas indiretas de frases, sem necessidade, como “para a melhor mamãe do mundo ela ser”, e de uma proliferação incomodativa de “ah!” no decorrer da narrativa, trata-se de uma prosadora de qualidade. Não sei se a existência de um personagem comunista na primeira novela (eu chamo de novela apesar da autora chamar de conto) pode incomodar alguma gente. Eu encaminharia este livro para a nossa coleção de novíssimos com o pedido à autora de uma revisão, uma releitura mais atenta para aperfeiçoar a linguagem. Não acho de nível para a co-edição, mas é certo que se trata de uma possível estreante de muito vigor e que merece a chance de um bom lançamento. Atenção: o tema do personagem comunista se repete em outras histórias, especialmente naquela te (sic) tem por título: Pai e Filho. Em suma: peço releitura por parte de outro membro da Comissão. (grifos em negrito meus)

NOTA: O termo “rejeitada”, acrescentado ao cabeçalho do parecer, sem indicação de que tenha havido pedido de vista por parte de outro membro da Comissão, faz supor que bastou para o veto do livro a existência, denunciada por Walmir Ayala, de uma renitente personagem comunista na obra da então iniciante Sônia Coutinho, que ao tomar conhecimento da censura, anos depois, ponderou: “Conheci Walmyr Ayala e creio que os pareceristas estavam numa posição difícil, pois sofriam pressões fortíssimas” (depoimento ao Jornal do Brasil, 15/01/95). Embora a quase totalidade dos censores não tivesse vínculo empregatício com o INL, estando desobrigada a participar das Comissões de Leitura, havia vantagens indiretas para a colaboração: em breve, o INL começaria a editar, sem necessidade sequer de co-edição, os quatro volumes ilustrados do custoso Dicionário brasileiro de artistas plásticos, de Walmir Ayala (o primeiro tomo, em parceria com Carlos Cavalcanti), além de aprovar co-edições da produção poética do mesmo colaborador.

Acredito que o trabalho de pesquisa e resgate sobre uma escritora, principalmente baiana, recupera parte de um legado histórico e cultural que muitas vezes fica nas dobras de outros interesses nem sempre de promoção intelectual. A literatura baiana contemporânea, creio eu, pode alargar muito mais o seu conjunto de produção, quase sempre restritos a uma linhagem masculina: Gregório de Mattos, Castro Alves, Jorge Amado, João Ubaldo Ribeiro - devido a uma crítica pautada ainda em valores androcêntricos - contemplando as produções de escritoras como Amélia Rodrigues, Ana Ribeiro de Góes Bittencourt, Sonia Coutinho, Helena Parente Cunha, Myriam Fraga, dentre outras, que discutem em seus textos questões de extrema importância nos estudos feministas e culturais porque são atravessadas por conflitos de classe, gênero, geração e etnia em uma estrutura social de base patriarcal e burguesa.

Texto escrito em 2007


sexta-feira, 26 de novembro de 2010

REVISTA MISCELÂNEA: LANÇAMENTO E CHAMADA DE ARTIGO

A Revista Miscelânea do Curso de Pós-Graduação da Unesp de Assis lançou recentemente o volume 08. Segundo o editor da Revista prof. Jaison Crestani:

O volume atual apresenta o dossiê "Literatura e Imprensa", no qual se explora os entrecruzamentos entre a produção intelectual e seus mecanismos de divulgação, oferencendo uma contribuição significativa para a compreensão da dinâmica que orienta a confluência entre bens simbólicos e fatores de mercado. A revista conta também com artigos de temática livre, uma entrevista que inaugura uma nova seção da Miscelânea, criações ficcionais que abrangem a prosa e a lírica e, finalmente, uma gravura artística que ilustra a temática contemplada pelo volume.

Além do lançamento, a Revista, que foi classificada pela Capes e recebeu o Qualis B3 na última avaliação, também está divulgando o seu próximo volume cuja proposta é compor um dossiê sobre literatura contemporânea. Ainda conforme o editor da Revista:

Aceitam-se, preferencialmente, artigos e resenhas que contribuam para a compreensão das diferentes manifestações da literatura na contemporaneidade, com abertura para o diálogo entre diferentes linguagens, gêneros, formas de expressão artística e cultural. A proposta almeja contemplar a diversidade dos processos de representação literária da atualidade e as relações entre forma literária e matéria social. Aceitam-se também artigos de temática livre, traduções, entrevistas e produções ficcionais.
O prazo para envio dos trabalhos é até o dia 28 de fevereiro de 2011. Maiores informações: www.assis.unesp.br/miscelanea.

sábado, 20 de novembro de 2010

ROSTO COM DOIS PERFIS

E me corto ao meio e me solto
de mim, duplo coração:
a que vive, a que narra,
a que se debate e a que voa
- na loucura que redime
da lucidez. (Lya Luft)


A publicação da escritora gaúcha Lya Luft, intitulada Histórias do Tempo, ed. Mandarim, 2000, presenteia o leitor com histórias permeadas de clarividência, poesia e memória, divididas estruturalmente em onze partes cada uma introduzida por um poema. A voz que narra, vai se revelando paulatinamente como escritora, poeta, ensaísta, discutindo questões como o processo da escrita, a relação entre escrita e experiência social e o pacto com o leitor - aquele com quem a escritora estabelece uma “aventura a dois”.


A narradora evidencia alguns componentes que se entrecruzarão ao longo da narrativa - memória, história, estrutura e relações sociais significadas através da ótica da mulher - apontando para o processo da escrita enquanto registro de um legado sócio-cultural gendrado. Estes aspectos tecidos na narrativa revelam o lugar de onde o escritor/narrador fala (seja ficcional ou social), expondo a sua visão de mundo, suas reflexões, balanços e questionamentos, colocando-se em constante diálogo com o leitor, exigindo dele, muitas vezes, uma postura auto-reflexiva diante de questões sociais, existenciais e relacionais. Histórias do Tempo fala de máscaras, infância, resistências, relacionamentos de mulheres consigo mesmas e com o(s) outro(s), geração de 60, família, vida, morte, amor e violência urbana, dosando linguagem poética e ensaística, através de um aguçado olhar feminino (eu diria feminista) crítico, representado pela voz narrativa, que, na maturidade, faz um retrospecto de sua vida, das relações sociais burguesas, percebendo, através de uma atitude de auto-descoberta, a dupla máscara que envolve a mulher. No romance, a narradora se alterna em duas vozes, ora Medésima “a mulher cotidiana”, a que se movimenta no código e ora Altéria, a mulher oculta “o desencontro o desdito o transverso o avesso...”


A leveza com que a voz narrativa percebe a presença de “duas mulheres” em si mesma, que se movimentam distintamente na sociedade, rompe com a estrutura do pensamento masculino Ocidental pautado na oposição e repulsa das diferenças. A narradora mostra que as negociações são possíveis e necessárias para que as diferenças possam se encontrar sem mutilações. Medésima e Altéria transitam em espaços diferentes, mas exercitam entre si rituais de delicadeza para chegarem ao equilíbrio. No texto, a problemática dos relacionamentos resulta do embrutecimento dos hábitos cotidianos, da falta de gentilezas que corroem os elos das relações e que acabam transformando as pessoas em indivíduos amargos e solitários.

Porque temos de estar sempre alertas, preparados, prontos para a invasão: a hora em que – às vezes sem me dar conta – eu quero impor a quem amo as minhas verdades ou o que penso que sejam, e declará-las território meu (...) A partir desse momento, sendo ‘a propriedade’ um do outro, o encantamento – com o respeito – começa a morrer.


O romance de Lya Luft nos convida a uma viagem pelos recantos da memória, estimulando-nos a reflexão e, mais precisamente, conduzindo-nos a pensar na Medésima e Altéria que habitam em nós. As perguntas que aparecem no texto levam o/a leitor/a a refletir as suas práticas cotidianas e os códigos que regem a sociedade com seus papéis definidos e fixos para homens e mulheres. A narradora enfoca o lugar da família como espaço institucionalizado, onde as relações de gênero são construídas e experenciadas, mas também onde se exercita sutis e obstinadas resistências. A tensão entre as limitações internalizadas e o desejo de extrapolar as cercas que delimitam e controlam as nossas atitudes é que faz Histórias do Tempo um romance inquisitivo e instigante ancorado numa tessitura fluida e poética.

domingo, 14 de novembro de 2010

MULHER NO ESPELHO, ATIRE EM SOFIA E REUNIÃO DE FAMÍLIA

Sônia Coutinho, Helena Parente Cunha e Lya Luft são escritoras de uma mesma geração, a de 60. As duas primeiras são da Bahia - sendo que Coutinho é da cidade de Itabuna e Cunha é de Salvador - e a última, Lya Luft, é de Santa Cruz, cidade do interior do Rio Grande do Sul. São mulheres oriundas da classe média alta e que foram educadas, como tantas outras, para constituir família, exercendo os papéis de esposas e mães. Elas começam a publicar seus romances nos anos 80, quando já se encontravam na maturidade e, também, quando o Brasil passava por uma transformação política, de abertura, após 20 anos de ditadura militar.

Atire em Sofia , 1989, Mulher no Espelho , 1985 e Reunião de Família, 1982, trazem reflexões de personagens que falam de suas experiências como mães e esposas, mas, principalmente, do choque entre os papéis sociais para o qual elas foram destinadas desde jovens e as aspirações enquanto mulher. O eixo de discussão dos romances recai em um mesmo objeto: o espelho – aliás metáfora presente nas três narrativas – que remete à busca das personagens por sua identidade, mulheres empenhadas em realizar uma aventura a partir de um percurso memorialístico para decobrir  o que as impediu de viver experiências e emoções que não fossem as autorizadas pela sociedade ou mesmo o que as mantêm atreladas a um passado.

O fato de reunir simbolicamente idéias de desdobramentos e conhecimento de si, torna o espelho uma metáfora freqüente na produção de autoria feminina e basilar para a crítica feminista, já que o seu sentido está relacionado diretamente à discussão sobre a identidade feminina, mostrando - através da reflexão das personagens, não para encontrar um igual, mas, ao contrário, para defrontar-se com o outro – como o constructo androcêntrico da sociedade ocidental é violento e inadequado à realização da mulher: “o espelho não tem como função refletir uma imagem; tornando-se a alma um espelho perfeito, ela participa da imagem e, através dessa participação, passa por uma transformação. Existe, portanto, uma configuração entre o sujeito contemplado e o espelho que contempla.” (Lúcia Leiro)

Em Atire em Sofia, 1989, a passagem do espelho mostra a personagem empreendendo uma viagem memorialística em direção a si mesma. Atravessar o espelho, como Alice, conduz a personagem a uma aventura de auto-conhecimento, no intuito de encontrar respostas para a sua exclusão/invisibilidade. À medida em que a personagem vai encontrando sentido para a sua existência, a imagem vai sendo recuperada até obter a visão de um “rosto pálido e envelhecido, um rosto afivelado em cima de muitos outros, como a penúltima máscara, um rosto qualquer, enfim, mas é o seu”.

No romance Mulher no Espelho, 1985, a imagem especular aparece também como discussão em torno da identidade da mulher. Olhar o espelho consiste em executar uma viagem introspectiva na tentativa de encontrar, nesta mirada, um sentido para sua própria vida. A personagem do livro de Helena Parente Cunha recorre à memória em busca de sua identidade, através de sua própria escuta, tornando o processo de auto-descoberta uma experiência fascinante e, ao mesmo tempo, extremamente violenta: “tenho o que dizer, pois vou dizer-me a mim mesma, como qualquer pessoa que se põe diante da memória ou dos espelhos”. O espelho inteiro remete à uma pretensa unidade do sujeito instabilizada e questionada ao longo do romance através dos embates da personagem. A imagem estilhaçada refletida nos pedaços do espelho e presente no final da narrativa, aponta para a existência de várias vozes, que se desdobram e se multiplicam: mulheres que habitam mulheres.

Assim como as duas narrativas anteriores, o romance Reunião de Família, 1982, de Lya Luft, apresenta o espelho que reflete o outro lado que não se mostra, ao mesmo tempo que estabelece um elo de reflexão com a personagem, descrita como uma mulher casada, mãe, dona-de-casa e que tem a sua sexualidade satisfatoriamente vivenciada com o amante, mas ‘deve’ ser ocultado da sociedade. Ao olhar o espelho, a personagem dialoga consigo mesma, percebendo na fissura da imagem, o seu duplo: “falo e já me arrependo. Espio rapidamente meu reflexo no espelho, aquela que não é a pacata dona-de-casa, é uma mulher má, cara cortada ao meio pela rachadura do vidro.”

O espelho, como objeto metafórico, permeia toda a narrativa de Luft, assim como acontece com os textos de Sônia Coutinho e Helena Parente Cunha, para discutir o percurso das personagens na busca de entenderem a si mesmas com seus rostos partidos, estilhaçados e afivelados. Mulheres que traçaram seus próprios caminhos na tentativa de encontrar alternativas e saídas para viverem uma vida mais humana e mais plena em uma sociedade patriarcal que só as reconhecia nos papéis de mães e esposas.

Nos três romances, a busca de identidade engendrada pelas personagens encontra resistência devido aos papéis que elas exercem na sociedade, fazendo com que, algumas vezes, elas rompam com o código e sofram a angústia da culpa ou encontrem, sem violar o código, formas de não permitir que o rosto encoberto sucumba às máscaras do cotidiano.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

"Desejos de enxames de abelhas nos laranjais floridos"

"Você está cansada de ver seu marido entrando e saindo com a pasta preta pregada na mão e os dois relógios agarrados no pulso e a voz hibernada. Em casa ele usa os chinelos nos pés sempre calçados de meias para não se resfriar. Você não quer mais passar a roupa da casa e contrata uma passadeira. Seu marido diz que é preciso economizar para comprar o apartamento de dois quartos à vista. Ele não gosta de se preocupar com prestações. Escassez definhável encurtar encurraladavelmente. Você se cansa de tomar conta da casa. Casada. Cansada. Cansaço cósmico. Destranscendência. Você quer entrar para a escola de belas artes. O marido arquiteto de sua amiga loura diz é bom as duas fazerem o vestibular juntas. Seu marido recua o rosto acuado e se tranca no quarto. Anéis cercos nós. Imersão. Desejos de enxames de abelhas nos laranjais floridos. Você ouve seu marido perguntar as horas e depois a dele voz dizendo em demoradas sílabas que quer fazer amor. Você está deitada na cama e abre as pernas sem nenhuma estrela acesa. Seu corpo está cansado do corpo de seu marido em comedidas ordenações. A luz do abajur apagada entre suas pernas apagadas. Cansada. Casada. Você está cansada do lado de cá. Mas onde a coragem? O lado de lá." (
(Helena Parente Cunha, do romance As Doze Cores do Vermelho, p. 47)

Quem nunca sentiu "desejo de enxames de abelha em laranjais floridos?"