segunda-feira, 26 de julho de 2010

A prosa poética e ensaística de Lya Luft

Li há muito tempo o romance Retratos de Família de Lya Luft, escritora gaúcha, responsável por inúmeras páginas de literatura  profundamente sedutora: enxuta, poética e existencial. Talvez seja uma marca da geração de 60, escrever para se conhecer e conhecer o outro. Assim é a literatura de Lya Luft, mas não apenas dela, mas de toda uma geração marcada a ferro e fogo pelo patriarcado. O romance ao qual me referi é um dos mais violentos e belos que já li porque envolve o leitor em um mundo bastante conhecido, expondo as suas feridas, mas oportunizando-os a dar o salto e sair de um ressentimento inconsciente. As origens de seus traumas e de sua dor confundem-se em um emaranhado de gestos de amor e cuidados, talvez por isso seja tão conflitante. Com uma linguagem impactante a voz narrativa tece as angústias de seus membros e com as quais o leitor passa a ser cúmplice sem pudor ou censuras.

Quase todas as produções publicadas nos anos 80 depõem contra a ordem patriarcal, destacando o pai como autoridade única, violenta e distante. O pai reúne e materializa um modelo que organiza as relações em torno da figura masculina austera e de violência implacável seja ela o pai, o marido, ou o irmão, a partir do qual os outros membros obedecem amedrontados ou dissimulam-se. Muitas vezes a mãe internaliza a fúria patriarcal, transferindo para os filhos o pavor e o medo que sente na condição de esposa. Para os filhos, a relação com a mãe é mais conflitante já que ela aparece como fonte de carinho e afeto, de alimentação e apoio, mas pode transformar-se em uma figura de perversidades inconfessáveis. 

Quero trazer aqui mais dois romances da referida escritora, publicado recentemente: O Ponto Cego, de 1999, e Histórias do Tempo, de 2000. O primeiro retoma um tema muito presente nas produções de Lya Luft, mas, também, das escritoras contemporâneas: a família patriarcal. Neste romance, a história é tecida comos fios das relações familiares: um casal e dois filhos, um menino e uma menina, formam as vidas que tecem o cotidiano familiar, sendo que o menino narra a história. Essa estrutura familiar não é despretensiosa, pois ela representa a família nuclear burguesa, alvo de crítica das escritoras na medida em que a família nuclear representa a destruição de vidas, logicamente, pensando da forma em que a família foi pensada.

O menino significa e constrói sentidos, tendo como eixo principal a sua vida e a de sua mãe:


"Esta é a história de um Menino e da Mãe do Menino: uma história de muita sombra. História de desvãos, do embaixo, do secreto. Narração de olhares, de um olhar. História de invocações"
A voz em terceira pessoa mescla-se à da primeira, sugerindo um mascaramento no plano narrativo de vozes que, como num palimpsesto, dialogassem: um adulto e o seu menino que mergulhando em sua infância traz as emoções interpretadas pelo adulto que o acompanha.

Um bom disfarce no plano da narrativa.

O menino vê as pessoas se inventando, com suas aflições e conflitos. O pai autoritário, que se esforça em conduzir a família por meio de regras e valores, acaba sendo flagrado com a empregada pelo filho; a irmã inventada pelo pai para lhe suceder e a esposa infeliz que no final resolve libertar-se de tudo e parte com o namorado da filha compõem a carga dramática da narrativa.

Com esse romance, Luft coloca novamente e, incansavelmente, a família, como o espaço para se dizer e não para ser silenciado e intocado, mas para ser o centro das discussões. A família que representa a base e sustentáculo do projeto burguês e cuja promessa de felicidade para seus membros parecia inundar as suas vivências de realização plena,  é mostrada repleta de falhas irreparáveis. O lar doce lar é visto com as lentes da experiência cotidiana, exposta e rasurada sem máscaras e contada com a leveza e dor de um menino.

Já em Histórias do Tempo, o livro é estruturado apoiando-se em gêneros diferentes. Há poemas em cada parte do livro e a narrativa é um misto de romance e ensaio, pois ao mesmo tempo em que a voz narrativa se põe a narrar a si mesma, ela vai refletindo sobre a sua existência, daí porque não se trata apenas de um romance, mas de um gênero híbrido.

Neste livro, uma mulher casada resolve falar de suas experiências, destacando as diferentes faces que a constituem. Me fez lembrar de Mulher no Espelho, de Helena Parente Cunha. Em Luft, Medésima e Altéria são a mesma mulher, mas cada uma agindo de uma forma e dialogando entre si.  "Altéria me impede de morrer esmagada no cotidiano - imperioso e também encantador - dos meus deveres e dos meus amores."

As duas personagens tão diferentes e tão necessárias uma a existência da outra faz do livro Histórias do Tempo uma narrativa deliciosa de ler e ao mesmo tempo provocadora.

Histórias do Tempo e O Ponto Cego são duas produções literárias que não podem deixar de faltar na estante de um voraz leitor da literatura brasileira.