segunda-feira, 2 de novembro de 2009

FÊNIX

O texto abaixo é uma prosa poética escrita por Myriam Fraga e um dos meus favoritos. É um canto de sobrevivência para aqueles e aquelas que lutam diariamente e precisam se fortalecer na própria adversidade. Em especial, para as mulheres que são abatidas, violentadas, desamadas em nossa sociedade, somente com um mergulho em suas profundezas poderão tirar de dentro de si forças para prosseguir... vivas.


Myriam Fraga


Renasço a cada dia. A cada manhã, renovo minhas penas. Ontem, foram as brasas. Meu corpo frágil, meu ser de indecisa textura, ardeu em chamas, devorou-se, inteiro, ao calor de sua própria fogueira. No fim, restou um pouco de pó, mornas cinzas escuras. Mas ao romper da manhã, os carvões se agitaram. Débil ruflar de asas, um espichar de remígios e, novamente pássaro, me ultrapasso. Para o alto, para o alto! Atrás são cinzas mortas, pó desfeito, uma pequena coivara onde crepitam, ainda, rescaldantes, os restos do braseiro.


Aos poucos, lentamente, recupero os sentidos. Aos poucos, lentamente, reaprendo os caminhos. Me oriento devagar pelas velhas pegadas. Aqui, sem dúvida, já estive. É meu este traço, este espalmado rastro. Sinto que há ainda em mim um vestígio de abismo. Um chamuscado leve, uma fina cicatriz no encontro das asas. E uma lembrança quase morta, uma recordação abafada da ferroada das chamas, do dilacerante calor brotando das entranhas.


Mas, renasci. Renasço todo tempo. E meu tempo é este constante oscilar, este pêndulo esticado entre o toque de morrer e a hora do resgate. Ainda há pouco eu era apenas um montículo de pó, resíduos calcinados. Mas uma nova força revive de minhas brasas, asas soltas no espaço.


Agora, o céu é meu. E todo este dia glorioso, com seu hálito de jasmins, com seu sopro de plumas. Meu é este dia, o espaço deste dia. E a força de viver bate forte nas veias. Respiro com prazer e me engolfo no vento. Mais uma vez retomo meus cantares. Mais um dia! Mais um dia! Sei que breve, de novo, morrerei. Sei que nova mortalha de pó e cinza velará a minha face. Outro fogo me espera, outro mergulho ao cerne da fornalha.


Mas, agora, me equilibro na força de minhas asas. Todo o horizonte me pertence, tudo que embaixo respira e se renova. Ventos brandos do céu, arco-íris, auroras. Um dia, de novo, enfrentarei o holocausto. E novamente arderei até a poeira final, o restolho, o borralho. Mas não importa. Sei que tudo isto é apenas passagem. E renascerei de novo de minhas cinzas. Íntegra e radiante para novas batalhas.


Fonte: http://www.atarde.com.br/materia.php3?mes=03&ano=1998&id_materia=113327. Coluna Linha D'Água do Jornal A Tarde.

domingo, 1 de novembro de 2009

Helena Parente Cunha: díálogos revolucinoários com a América Latina através dos microcontos

"El éxito del microcuento se da cuando logra impactar al lector, cuando lo mantiene en un éxtasis de reflexión y de entrega consigo mismo" (autor desconhecido)

Os microcontos são, estruturalmente, narrativas condensadas e que pelo seu traço sintético e simbólico se aproxima bastante do poema. Nos microcontos as palavras sugerem mais do que dizem e, por isso, são formados por forte carga simbólica. O microconto, como afirma Massiel Mossos, é um gênero que nos mostra uma nova perspectiva do texto, nos conduz a diferentes labirintos que visa entreter e manter o leitor em interação contínua. Por utilizar o mínimo de palavras para expressar idéias só pode ser significado por aquele que queira jogar com a palavra e o pensamento.

O componente lúdico do microconto - que evidencia muito mais o papel do leitor, responsável por percorrer o labirinto e construir as significações - associado a sua estrutura condensada, não ultrapassando uma página, fortemente imagético, remete-nos também às artes plásticas. Aliás, a plasticidade dos microcontos confere a estes uma identidade híbrida, polissêmica, parafrástica e intertextual, mostrando-nos, muito claramente, a carga dialógica, ideológica e expressiva nas escolhas combinatórias das palavra. É por meio desse elemento que a leitora e o leitor produzem os sentidos, isto é, faz uso da sua experiência perceptiva, da sua visão de mundo para dizer o que não foi dito, mas sugerido. Por isso, os microcontos são revolucionários, pois exige do leitor e da leitora uma ação, uma desacomodação.

Helena Parente Cunha, dialogando com escritores e escritoras dos países da América Latina e por conta de sua habilidade em transitar com tranquilidade entre a prosa e a poesia, soube muito bem produzir microcontos, combinando elementos da prosa e da poesia, para tematizar questões relacionadas às experiências das mulheres. A escolha não poderia ter sido melhor para provocar uma desacomodação nas leitoras e manter com elas um diálogo, pois através da revolução estrutural, Helena Parente Cunha trouxe também, colado à estrutura, temas igualmente libertários e emancipatórios que falam muito da vivência das mulheres. Essa tematização provoca uma reflexão, um pensar das mulheres sobre si mesmas, como mencionado na epígafre, possibilita às leitoras o encontro delas com suas experiências, com a experiência política de ser mulher, pensando-se individualmente e para fora de si, tomando consciência de sua existência e a de tantas outras existências de mulheres.


INDECISÃO

Todas as noites. A respiração acelerada. O corpo junto do corpo. A boca dentro da boca. Os braços se fundindo nos braços. As pernas atravessando as pernas. As mãos incutindo espaços. O buscar de mais buscar. O corpo querendo entrar. O corpo pronto a acolher. O arfar. A espera. A sede, a rede. A parede. O corpo querendo entrar. Um corpo que se fechando. Não. Não. Ela se solta, ela se assalta, ela se volta. Ele revolta. Não. Desta vez ele vai para nunca mais voltar. (destacados por mim)