domingo, 31 de outubro de 2010

O Insistente Desafio de Hilda Hilst: Três leituras de Vera Queiroz

Vera Queiroz tem desenvolvido pesquisas na área de Literatura Brasileira, articulando estudos de gênero e cânone, que resultou em uma tese de doutorado, defendida pela PUC do Rio de Janeiro e publicada pela EDUFF (Editora da Universidade Federal Fluminense), em 1997, sob o título Crítica Literária e Estratégias de Gênero.

Em Hilda Hilst: três leituras, livro lançado em 2000, pela Editora Mulheres, Queiroz analisa algumas produções da ficcionista [Hilda Hilst] a partir de três ensaios: 1) O guardião do mundo, no qual a ensaísta analisa os textos eróticos da escritora; 2) Rútilo nada: as margens, em que Queiroz trata da questão do homoerotismo dentro dos estudos feministas e culturais; 3) Hilda Hilst e o cânone, no qual a estudiosa analisa, de forma comparativa, as produções Um copo de cólera de Raduan Nassar e Rútilo nada de Hilda Hilst.

No ensaio O guardião do mundo, Queiroz nos apresenta três aspectos básicos presentes nos textos de Hilda Hilst. O primeiro aspecto enfoca a transgressão temática, visto que “a pudicícia no tratamento do tema amoroso, da sexualidade ou do erotismo está longe de habitar seus textos”; o segundo mostra a subversão formal no texto da ficcionista, na medida em que a escritora não obedece a algumas regras, seja no plano estrutural seja no plano discursivo e o terceiro aspecto trata da mistura de gêneros literários que, segundo a crítica, é uma das técnica utilizada por Hilst.

O segundo ensaio de Queiroz aborda a temática homoerótica na novela Rútilo nada, salientando que o desinteresse da crítica pela produção de Hilst advém da falta de compromisso político, já que o “olhar crítico sobre a literatura e a arte em geral está indelevelmente marcado pelo compromisso ético, estético e existencial face à perspectiva de gênero”. Nesse sentido, a ensaísta evidencia a importância dos estudos contemporâneos [estudos culturais e de gênero] na análise dos textos de Hilst e suscita indagações sobre como a alta literatura vai lidar com as temáticas transgressoras da ficcionista, sem invisibilizar a vibração formal que permeia o seu texto. Essa discussão continua no terceiro ensaio no qual Queiroz atribui a exclusão de Hilda Hilst do cânone literário brasileiro à questões históricas e de gênero. A ensaísta coloca Hislt na linhagem de Lispector e aproxima a escritora paulista de seu contemporâneo Raduan Nassar. Este, além de apresentar, também, uma linguagem corrosiva e violenta e tematizar o erotismo, discute problemas relacionados à política.

Segundo Vera Queiroz, apesar da escritora formalmente equiparar-se ao escritor através da linguagem e, também, de uma certa forma, tematicamente, ela não recebe o mesmo tratamento, o que leva a ensaísta a expor o privilégio de gênero e da história na eleição dos textos a serem lidos e estudados.

Lúcia Leiro é professora de Literatura Brasileira da UNEB e tem desenvolvido estudos sobre a produção de autoria feminina contemporânea, sobretudo das escritoras baianas – Sonia Coutinho e Helena Parente Cunha.


Vera Queiroz Professora de Literatura Brasileira nos cursos de Graduação e Pós-Graduação da Universidade Federal Fluminense, pesquisadora do CNPq, tem trabalhado na pesquisa "Ficção feminina contemporânea e cânone", de que o livro "Hilda Hilst: três leituras" faz parte. Trabalha com as linhas "Crítica feminista"; "Feminino e literatura", "Ficção contemporânea".

Referência:

QUEIROZ, Vera. Hilda Hilst: três leituras. Florianópolis: Mulheres, 2000. 74 p.

O CARNAVAL E AS SUBVERSÕES DE MULHERES EM AMÉLIA RODRIGUES E SONIA COUTINHO

Alguns aspectos aproximam Amélia Rodrigues e Sonia Coutinho: ambas são escritoras e baianas. Embora não fossem contemporâneas uma da outra (Amélia Rodrigues viveu no início século XX e Sonia Coutinho atualmente vive no Rio de Janeiro), as duas abordaram, em seus textos, situações envolvendo as mulheres e os códigos sociais num ambiente carnavalesco, sendo que o conto O "defeitinho" de Carmita, de Amélia Rodrigues, publicado em 1929, enfatiza a subversão da personagem Carmita por participar do carnaval e o romance Atire em Sofia, de Sonia Coutinho, publicado em 1989, mostra situações de conflito político e identitário da personagem Milena, representado-a como símbolo da resistência étnico-feminista com o objetivo de encontrar respostas para as angustias de uma jovem em busca de um espaço de pertencimento de mulher negra, baiana e de classe média alta em Salvador.

1.

Amélia Rodrigues utiliza a metáfora da máscara do carnaval e da fantasia para mostrar o duplo comportamento da personagem Carmita que tenta driblar a proibição da sociedade, representada pelo seu noivo, de participar do carnaval. O noivo de Carmita, Dr. Aguiar, jovem médico da aristocracia agrária, chega à cidade para visitar a noiva às 22 horas e não a encontra em casa. Nesse ínterim, o rapaz encontra um amigo que resolve fazer-lhe companhia e os dois passam a conversar sobre casamento, a mudança do comportamento das mulheres devido a modernização da cidade - cinema, moda, flir - e, sobretudo, sobre Carmita, tudo isso intercalado por eventuais cenas do carnaval. Durante a conversa, enquanto o noivo tecia elogios ao comportamento recatado da noiva, o amigo procurava abalar suas convicções, aludindo a uma possível postura desviante da jovem. A narrativa finaliza com a passagem de Carmita vestida de Ninfa diante do noivo que, decepcionado, termina o noivado. O médico casa-se com uma jovem vizinha da fazenda com quem constitui família.

A atitude de enfrentamento da jovem, ao participar do carnaval, parece exorcizar o "medo moral" engendrado pelas proibições autoritárias, pelos interditos e pelas punições que acorrentavam o livre prazer da personagem exercer a vontade própria, indo de encontro com o discurso oficial que restringe a atuação da mulher ao espaço familiar, privado, separando-a do espaço público, da sociabilidade, da individualidade. A subversão da foliona corresponde a ultrapassagem do temor e, portanto, dos limites impostos pela norma burguesa que se utiliza de métodos coercitivos para impor disciplina e subjugar as mulheres aos interesses ideológicos de classe, sufocando as expressões "desviantes" provenientes de uma identificação com outro código incompatível com os propósitos da moral burguesa e judaico-cristã. Sendo a lei imposta pelo medo, cabe ao carnaval afugentá-lo e instaurar, ainda que por curto período, a satisfação de viver e explorar outras situações, outros códigos, outras máscaras, outras identidades.

2.

Em Atire em Sofia, a escritora utiliza o carnaval em um contexto de afirmação identitária e étnica da personagem Milena, jovem negra de classe média alta que, ao lado do namorado rastafari Tetu, assiste ao desfile dos blocos afros "Ilê Ayiê, Araketu, Olorum Baba Mi, Male Debalê". A jovem educada nos moldes burgueses busca, ao longo da narrativa, por um lugar de pertencimento identitário e de contestação à ordem burguesa. A personagem enfrentava a sociedade através da música (inicialmente o rock e em seguida os ritmos afros); dos movimentos urbano estético-musicais punk e afro dos anos 80 e 90 que questionavam os valores burgueses e através do comportamento de subversão étnica e de gênero, desafiando a família ao namorar um jovem negro e rastafari.

O espaço do carnaval abraça simultaneamente múltiplas e diferentes imagens, linguagens que, no texto, podem ser exemplificadas pela "visão" de Jim Morrison, vocalista da banda The Doors, cantando em um trio elétrico, clamando pela desordem e pela "politização erótica" ou pela concomitância de registros diferentes através das "músicas de protesto" e de afirmação cultural dos blocos afros e da transgressão rítmica "enlouquecida" dos trios elétricos. As diferentes expressões de postura desrepressora representadas pelos gestos, pelos sons, pelas imagens desconexas, muitas vezes justapostas, provocam na personagem - lugar da resistência - a ruptura dos traumas de sua educação, desatando os nós morais oriundos das coibições que, para a mulher, tem relação com a sexualidade, duramente controlada pelos artefatos produzidos pela sociedade burguesa e judaico-cristã. O carnaval aparece como território das possibilidades, do permitido, da erótica e da política já que se instaura como voz dissonante ao discurso consensual.

O rock inscreveu-se, em um momento histórico, como linguagem de contestação produzida em contextos culturais e sociais alicerçados pelo código burguês. Os ritmos afros inscrevem [e são inscritos] na cultura baiana, sobretudo de Salvador, como linguagem de protesto e de afirmação identitária de dicção étnica de matriz africana, sobretudo nos anos 80 quando o ritmo dos tambores começaram a ganhar espaço na mídia.

3.

A narrativa produzida por Amélia Rodrigues explora as manobras produzidas pela norma social para disciplinar e controlar o comportamento da mulher ao mesmo tempo que registra a resposta da personagem traduzida na disposição em construir outro caminho - metaforizado pelo carnaval - de viver em sociedade.

No texto de Sonia Coutinho, o carnaval alcança dimensões políticas que atravessam as categorias de gênero e etnia já que é no espaço do riso que a personagem consegue transpor e experimentar livremente, numa explosão de linguagens, imagens e sons, as suas atitudes com liberdade.

Reenvios:

COUTINHO, Sonia. Atire em Sofia. Rio de janeiro: Rocco, 1989.

RODRIGUES, Amélia. Do meu archivo: contos e phantasias. Bahia: Livraria Nossa Senhora Auxiliadôra, 1929.

SOIHET, Rachel. A subversão pelo riso. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998.