terça-feira, 25 de outubro de 2011

10a Bienal do Livro da Bahia

Professores podem trocar vale-livros hoje e amanhã

Os 1.600 professores da rede estadual de ensino inscritos no Portal da Educação para receber o vale-livro que utilizarão na 10a Bienal do Livro da Bahia (de 28 deste mês a 6 de novembro, no Centro de Convenções da Bahia, em Salvador), devem ir ao posto de troca instalado no Colégio Central, na Avenida Joana Angélica-Centro, hoje e amanhã, das 9 às 17h.

É preciso levar a Declaração de Recebimento Vale-Livros assinada, além do contracheque e um documento de identidade com foto. A lista dos profissionais contemplados e o documento estão disponíveis no Portal da Educação (www.educacao.ba.gov.br).

Há ainda 1.400 vale-livros para os professores que não se inscreveram pelo portal. Eles também precisam preencher e assinar a Declaração de Recebimento Vale-Livros e entregar num dos três postos de troca disponibilizados pela Secretaria da Educação do Estado, nos mesmos dias e horário.

Número – Os professores devem ficar atentos em relação ao número de vale-livros disponíveis por dia nos postos de trocas localizados no Instituto Anísio Teixeira (IAT), na Paralela (atendimento a 200 profissionais da educação diariamente), Biblioteca Central da Bahia, nos Barris (250/dia), e o Instituto Central de Educação Isaías Alves (Iceia), no Barbalho (250/dia). Os interessados deverão levar também o contracheque e um documento de identidade com foto.

Extraído do DOE 25/10/2011

domingo, 14 de agosto de 2011

O que voce entende por leitora gendrada e leitora feminista?


Algumas reflexões:

"sendo a leitora gendrada marcada pelos seus pertencimentos de genero, não de sexo, ela vai tirar da cultura,do social, de sua relações de genero, de toda uma expectativa que existe e se forma em torno da representaçao do feminino, seu/s entendimento/s, sua percepção, sua recepção e sua resposta ao texto ficcional. Para ter esse entendimento a leitora gendrada não precisa de nada mais do que estar imersa num determinado contexto politico-social e cultural. Já a leitora feminista se diferencia pela consciencia que tem de si mesma, de suas questões sociais,culturais e politicas. A feminista é um sujeito em processo, é alguém que rompe com uma representação do feminino, porque consegue decodificar seu genero, se diferenciar enquanto agente de sua propria existencia. O genero é um construto cultural, social e político; já o feminismo é uma subversão construtiva de um sujeito emergente dentro de uma dada sociedade. Logo a leitora gendrada leva para o ato interpretativo da leitura seus/suas especificidades de genero, geralmente de forma inconsciente, não reflexiva, com isso ela não rompe com o padrão cultural nas suas possibilidades de construção interpretativa do texto. O que não acontece com a leitora feminista que consciente de seu lugar, de seu papel de sujeito, do seu discurso, rompe com a cultura e subverte o "status quo". Veja as leituras de Viginia Woolf ao escrever sobre profissões para mulheres e/ou a irmã de Shakespeare(Judith), em UM QUARTO TODO SEU."

( Nadilza Moreira,UFPb, nadilza@zaz.com.br )
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"Quanto as suas questões, acho que o primeiro termo deve ser 'genderizada', vem do inglês "gender". No discurso feminista anglo-americano o termo 'gender' vem sendo usado para designar o significado social, cultural e psicológico imposto sobre a identidade sexual biológica da mulher. Já uma leitora feminista implica que tal leitora tem uma postura política, ou seja, exerce sua cidadania como uma verdadeira feminista que significa uma prática de vida, portanto, consciente da discriminação sexual contra a mulher."

(Clélia Reis Geha, UNICAP,reisgeha@novaera.com.br )

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"Todas nós somos leitoras gendradas. Entre outras categorias que constróem nossa identidade (raça, classe, valores e posições diversas) somos também marcadas por especificidades de gênero que nos delimitam como a mulher que somos com toda a pluralidade de vozes que nos habitam. Um ser gendrado é um ser inserido na dinâmica social e cultural relacionadas à experiência sexuada e aos valores, normas, regras e configurações vinculados a essa experiência. Já uma leitura feminista requer, em primeiro lugar, que nós evidenciemos a estrutura gendrada do ser humano, ou seja, é preciso colocar o foco de análise nos sistemas ideológicos que regem a existência humana sexuada buscando reconhecer os mecanismos de controle dos símbolos culturais por parte da ideologia dominante. A partir daí a leitura feminista questiona os padrões que organizam as experiências de homens e mulheres e que dão legitimidade a determinados tipos de discurso, identidades e relações, ao mesmo tempo que excluem inúmeros 'outros'. A leitura feminista é, então, um modo de desestabilizar a matriz que sustenta discursos universalizantes sobre as identidades do sujeito e que, ainda hoje, funcionam dentro da lógica da opressão e do silenciamento de vozes que ousam escapar de determinados esquemas representacionais que os enquadram e os definem. Uma leitura feminista se estabelece à medida em que busca a desestruturação da lógica patriarcal e heterossexista, apontando para o horizonte de novas possibilidades de leituras dos códigos textuais e para o desafio de estar em um movimento constante de ressignificação e reinterpretação dos textos, dos símbolos, da vida, das relações humanas com seus múltiplos arranjos e suas tênues fronteiras."
(Simone Sampaio, Departamento de Teoria Literária, Universidade de Brasília, simonesampaio@zaz.com.br))
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Grosso modo, concordo com a distinção feita pelas outras colegas, mas acho que o fato de não vestir a camisa do feminismo não torna necessariamente uma leitora crítica inconsciente da sua condição de mulher e das determinações dessa condição no seu ofício. Seria bom que encontrássemos um termo menos feio em português para a tal leitora gendrada, que é horrível ou genderizada, que é tão horrível quanto. Afinal, trabalhamos com linguagem e devemos ser sensíveis às palavras. Por que não inventar algo que se desprenda um pouco mais da palavra em inglês?

( Ligia Chiappini (lchiappi@zedat.fu-berlin.de)

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Não sei se eu entendo bem o que é uma leitora feminista e uma leitora gendrada, porque penso que não compreendo uma leitora separada de ser também escritora. Penso na interpelação que cada uma admite e percebe com relação aos efeitos de "essência": leitora, e não leitor, feminista, e não masculinista, gendrada e não instituída. Penso que Ligia fala bem de um detalhe gritante: por que emitir a discussão partindo de um termo que já remete a um centro difusor hegemônico, que é a língua inglesa? Talvez a feminista estabeleça um roteiro de prática política, que visivelmente tenta inverter a lógica patriarcal. Não gosto da idéia! Por que a lógica patriarcal se institui também com o apoio que corpos femininos dão aos valores patriarcais. Muitas mulheres gozavam ao ver aquelas que eram consideradas bruxas arderem nas fogueiras. Talvez seja melhor pensar como desmontar a máquina de fabricação de termos e essências; a lógica da trama, para mostrar a trama se fazendo na oficina dos valores, dos discursos, das pequenas armadilhas que o discurso nos prepara e que preparamos nos discursos. Delirei? Talvez sim...

(Eliana Mara de Freitas Chiossi, professora e doutoranda da UFBA: achiossi@ufba.br )
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Enquanto fui lendo esse princípio de discussão aqui esboçado, dois sentimentos e respectivas reflexões foram tomando conta de mim: primeiro, sobre a fecundidade desse debate, pois vocês mulheres conseguiram introduzir novo olhar na medida em que conquistaram uma voz, um discurso com dicção e sensibilidade próprias no horizonte dominado historicamente pelo homens; segundo, visto que nos instituimos pela linguagem, e esta possui uma estética fina e sutil, fui reagindo a esses termos horrorosos (para dizer o mínimo, pois que também trazem a marca de nosso colonialismo espritual) "gendrada", "genderizada"..., quando se poderia dizer algo como «generizada», pelo menos na linha do nosso legado lingüístico. Felizmente, ao chegar ao texto de Ligia Chiappini encontrei uma parceira de sensibilidade. Como quer que seja, felicitações pelo valor da discussão. Mas nem como tal discussão chegou à minha caixa postal, porém fiquei contente.

(Eduardo Diatahy B. de Menezes, Professor Titular do Doutorado em Sociologia Universidade Federal do Ceará)

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Ligia Chiappini tem razao quanto ao feio dos termos gendrada e genderizada, mas o generizada proposto pelo Eduardo também nao vai muito longe. Na verdade, sao problematicos sao quase todos os termos com que trabalha a critica feminista ou mesmo quase tudo que circunscreve o universo feminino [o que vem a ser ? ], a mulher [idem], a sexualidade feminina [ibidem], já apontava Freud em sua pergunta, celebre e inaugural. Quanto aos conceitos em pauta, penso que toda critica "gendrada" eh tambem feminista, se compreendemos a primeira como uma posição de leitura crítica dos objetos da cultura de forma "interessada", no sentido de trabalhar com os valores e com as diferentes ideologias que circunscrevem homens e mulheres em papeis sociais, cada vez mais moveis, mas ainda assim (e nos tempos atuais) hierarquizados. Outro aspecto interessante desse papel de leitora critica eh que ele nao eh intrinseco aa mulher, nao eh da ordem de nenhuma essencia, mas um lugar que se ocupa para ler, interessadamente, tais objetos da cultura, do mesmo modo que se pode, por exemplo, ler um texto a partir de uma perspectiva psicanalitica, ou formalista, ou sociologica, pode-se tambem le-lo sob uma perspectiva feminista. A diferença estaria em que as primeiras disciplinas ja tem um corpus teorico estabilizado, enquanto a critica feminista nao o tem, nem podera te-lo, mas se apropria de todas as outras para atuar, constituindo-se nesse gesto basico transdisciplinar. Alem disso, determinadas mulheres podem ocupar tal lugar com maior eficacia, por obvias razoes.

(Vera Queiroz, Profª Adjunta da UFF, vqueiroz@unikey.com.br )



Cantos e cantares, livro de poemas de Helena Parente Cunha. 2005.

Cores, linhas, formas. Os poemas de Helena Parente Cunha reunidos em Cantos e Cantares, editora Tempo Brasileiro, 2005, reúnem fulgurações em imagens, sejam através das pinturas de Van Gogh, Monet, Da Vinci, seja através do olhar do eu-poético que, pela memória, justapõe passado, presente e o devir. O passado e o presente trafegam livremente em mutações, reinventando-se a cada visão, somando-se e se preenchendo de significações, redescobrindo-se pelos sentidos.

Entre flores, quintais, ruas e esquinas, o olhar do eu-poético apreende e se lança ao devir em recomeços, assim como a natureza, em ciclo e constantes, doando-se incansavelmente à tranqüilidade e beleza de existir. Mas essa natureza que ao mesmo tempo se lança aos olhos para contemplação, também fere, com suas pontiagudas pedras. Com esta alegoria, a vida humana é captada pela poesia de Helena Parente Cunha, em sua complexidade, de vidas de flores e pedras.

As Filhas do Falecido Coronel, Katherine Mansfield : Uma leitura sob a perspectiva de gênero.


"É extremamente mais difícil matar um fantasma do que uma realidade."

A epígrafe fez parte de um discurso proferido por Virgínia Woolf para a National Society for Women's Service em 21 de janeiro de 1931 e publicado post mortem em 1942. A reflexão da autora inglesa discute a questão da mulher no campo profissional, demonstrando que os conflitos experimentados pelo feminino acontecem através do tensionamento entre a sua vontade de exercer uma atividade profissional e o modelo que lhe é imposto pela sociedade que a exclui desse espaço. Segundo Virgínia Woolf, a mulher que tenta sair do circuito privado (espaço da casa), esbarra em um espectro que a faz recuar. A autora, que experimentou esses embates, argumenta que se deve matar o fantasma ou Anjo da Casa, como ela mesma chama, aquela voz feminina que tenta fazer a mulher vacilar, fazendo-a lembrar de que não deve desviar-se do "seu" comportamento e missão. É umaa voz que parte de dentro, que atravessou séculos e que vigia a mulher, inibindo-a quando esta intenciona ocupar um outro espaço pré-determinado como não-feminino.

O conto de Katherine Mansfield traz a trajetória de duas mulheres Josephine e Constantia filhas de um coronel viúvo e doente que vem a falecer. Com a morte do pai, as filhas experimentam o conflito da ausência de um "referencial protetor". Mais ainda, experimentam a presença do fantasma do pai, ou seja, do que esse lugar representa no inconsciente dessas mulheres agindo como elemento cerceador. Lembremos de que as mulheres de classe média do século XIX só saíam da casa dos pais para formar uma outra família, portanto, a idéia era de que sempre haveria uma figura masculina que as guiassem: "- não consigo imaginar como eles conseguem sobreviver." (Constantia falando sobre os camundongos).

A falta de uma figura masculina desestabiliza e provoca na personagem uma inquietação, uma preocupação que a faz refletir sobre a sua vida. O trecho não mostra explicitamente a articulação que Constantia faz entre os camundongos e a sua existência, mas o fato de exteriorizar a sua incompreensão diante da sobrevivência dos camundongos que vivem livres, independentes de um provedor, acaba deixando uma lacuna a ser preenchida por ela mesma visto que o discurso deixa transparecer um questionamento e, portanto, uma instabilidade na condição em que sempre esteve envolvida.

As Filhas do Falecido Coronel é um texto predominantemente dialogal e preocupa-se em apresentar os embates e sensações experimentados pelas duas personagens femininas: os medos, as angústias, os mecanismos de evasão, a frustração, a insegurança, enfim reações que se exteriorizam através de situações que, por sua vez, refletem os impasses internos de cada uma. O primeiro deles se dá no início do conto quando Constantia e Josephine discutem o uso do luto dentro de casa. Acontece a primeira dúvida e a primeira resolução a tomar. Um problema do cotidiano se apresenta como um árduo obstáculo para duas mulheres tão acostumadas a não tomar resoluções. No entanto, o que parece relevante apontar é o caminho que a autora vai traçando para as duas mulheres que partem de uma situação/problema e o esforço de superá-lo. Através dessa operação se dá o amadurecimento das personagens, a tentativa de construir uma consciência de identidade feminina. Através da morte do pai essas mulheres vão se firmando e re-construindo as suas vidas . As dúvidas podem partir de situações do dia-a-dia como a escolha do cardápio para almoço até as mais complexas como a demissão ou não da empregada (Kate). Mas até chegar a esse ponto, as personagens insistem, resistem, desistem, retomam posições; esse processo que a autora procura enfocar traduz a experiência do feminino em apre(e)nder o mundo através dos próprios olhos, das suas próprias ações, partindo das suas próprias reflexões dando certo ou não.

As superações e enfretamento de Josephine e Constantia acontecem paulatinamente durante a narrativa. Em uma das partes do texto, elas resolvem entrar no quarto do pai que sempre as proibiu de estar lá pela manhã porque não gostava de ser incomodado. A cena é descrita por Katherine Mansfield com habilidade ao apresentar a força de atração e repulsa que se instaura nas mulheres ao entrar em um espaço "proibido":

Josephine só conseguia olhar fixamente. Ela tinha o sentimento mais extraordinário de que acabara de escapar a algo simplesmente terrível. Mas como conseguira explicar a Constantia que papai estava dentro da cômoda? Ele estava na gaveta superior, com os lenços e as gravatas, ou na seguinte, com as camisas e pijamas, ou na inferior, como todos os seus ternos. Estava observando dali, escondido - logo atrás da maçaneta - pronto para saltar.

O espaço estranho causa medo; os objetos naquele quarto remetem ao pai, presentificando-o. Contudo, o contato com os pertences do pai enfocada como uma transgressão a "lei paterna" as fortalece. Não seria essa mesma sensação de sentir-se "fora", de não pertencimento que nós experimentamos já que as coisas que estão a nossa volta nomeadas não representam a nossa experiência mas sim a do Outro? Não seria a ousadia em conhecer/ler/transgredir esse universo que nos torna mais conscientes de nós mesmas, do nosso lugar e assim poder desenvolver/resolve nossas estratégias/angústias? "Fez então uma daquelas coisas surpreendentemente ousadas que fizera apenas umas duas vezes na vida antes... "

Os mecanismos de evasão que as personagens vivenciam, revelam a tensão desencadeada por situações de impasse, mesmo as mais corriqueiras. Há trechos no conto que mostram como Josephine e Constantia utilizam artifícios em momentos de embates. A evasão ou os desvios parecem ser recorrentes quando as duas têm algum obstáculo, algum problema que não conseguem resolver, pelo menos a curto prazo. Um deles era a presença incômoda da enfermeira que cuidara do pai até a sua morte. Livrar-se da hóspede "de hábito enlouquecedor" parecia tarefa muito difícil, levando as filhas do coronel a, esporadicamente, evadir-se:

Josephine ficava muito vermelha quando isso acontecia, e pregava seus pequenos olhos em feitio de contas na toalha, como se visse um minúsculo inseto estranho se arrastando por sua trama. Mas o rosto comprido e pálido de Constantia se alongava e ficava carrancudo, e ela desviava os olhos para longe - longe - para o deserto, onde aquela fila de camelos se desenrolava como um novelo de lã...
(...)
A enfermeira Andrews esperava, sorrindo para ambas. Seus olhos vagavam espiando tudo por trás dos óculos. Constantia, em desespero, retornou a seus camelos.

O camelo é comumente considerado símbolo de sobriedade (...). É o atributo da temperança. O camelo significa também o veículo que conduz o homem de um oásis a outro, atravessando o deserto. Este, por sua vez, representa o lugar afastado de Deus, portanto, afastado do Pai. Um lugar de solidão, de dificuldades, mas de perseverança e de fortalecimento. A experiência de Constantia é de solidão, mas também, ao mesmo tempo, de busca de sentido em um outro lugar imaginado.

As filhas do coronel tomam consciência de suas atitudes quando aparece a figura do realejo, tão desprezada pelo pai. A primeira reação que elas têm é de encontrar uma moeda para livrar-se do realejo, o que acontecia sempre quando o pai estava presente. Nesse momento, elas param e lembram-se de que não é preciso, não há nada que as impeça de escutar o realejo. Dá-se nesse momento a morte do pai:

(...)E também Josephine esqueceu-se de ser prática e sensata; ela sorriu leve, estranhamente. Sobre o tapete indiano incidiu um retângulo de luz solar vermelho-pálida; vinha e sumia e vinha...e ficava, escurecia - até brilhar quase dourado.
(...)
Uma fonte perfeita de notas borbulhantes vibrou do realejo, notas redondas, brilhantes, dispersando-se despreocupadamente.

Constantia ergueu as grandes mãos frias como que para segurar aquelas notas, mas depois as deixou cair. Dirigiu-se a cornija da lareira, até o seu Buda favorito. E a imagem de pedra dourada, cujo sorriso sempre lhe transmitia um sentimento tão estranho, quase uma dor, mas contudo uma dor agradável, parecia hoje mas do que sorrir.

Escutar o realejo significa transgredir a Lei. As filhas começam a se dar conta da alegria de estar livre do domínio paterno, alegria de poder decidir. Simbolicamente, as sensações experimentadas encontram-se no trecho representadas pelo tapete e pelo Buda. O tapete embora, para o ocidente, seja meramente um objeto de decoração, para o oriente há todo um valor "mágico". Cada desenho, formas e cores têm um sentido. O tapete representa a morada, a casa e as cores que incidem sobre ele - o vermelho e o amarelo ("dourado") - significam, respectivamente, alegria e poder. Posso relacionar o tapete como sendo a própria vida, o corpo dessas mulheres que experimentam plenamente, pela primeira vez, a alegria e o poder de reger as suas vidas. A oscilação da luz em ir e vir, traduz o processo íntimo que se opera na personagem até experimentar plenamente, naquele momento, a alegria em sentir-se livre. O Buda também representa poder e sabedoria. "(...) o que significava isso? O que era isso que ela estava sempre querendo? A que levava tudo isso? E agora? E agora?"

Ela se afastou do Buda com um dos seus gestos vagos. Dirigiu-se para onde Josephine estava parada de pé. Queria dizer uma coisa para Josephine, uma coisa terrivelmente importante, sobre...sobre o futuro e o que...

- Você não acha que talvez... - começou.
Mas Josephine interrompeu.
- Eu estava me perguntando se agora... - ela murmurou. Detiveram-se; esperaram uma pela outra.
- Prossiga, Con - disse Josephine.
- Não, não Jug; falo depois - disse Constantia.
- Não, diga o que você ia dizer. Comece você - disse Josephine.
- Eu...eu preferiria ouvir o que você tinha a dizer primeiro - disse Constantia.
- Não seja absurda, Con.
- Realmente, Jug.
- Connie!
- Oh, Jug!
Uma pausa. Então Constantia disse debilmente:
- Não posso dizer o que ia dizer. Jug, porque esqueci o que era...que eu ia dizer.
Josephine ficou em silêncio por um momento. Fixou uma grande nuvem onde antes estivera o sol. Depois respondeu brevemente:
- Eu também esqueci.

Foi necessário transcrever o final do conto inteiramente porque mostra claramente o itinerário dessa auto-descoberta da condição/situação em que as personagens se encontram. Os questionamentos, os recuos revelam que o caminho está por fazer-se. Interessante mostrar as experiências contraditórias dessas mulheres que diante da possibilidade de se sentirem felizes com a ausência do pai sentem-se também culpadas por essa sensação. Essa culpa se apresenta através da voz do Anjo da Casa que no texto aparece como a grande nuvem que tenta esconder o sol, o prazer da descoberta de exercer autonomia. Esses avanços e recuos, a ousadia e o medo são alternadamente vivenciados por essas mulheres, sem predomínio de um sobre o outro. O momento da oscilação evidencia uma rachadura no modelo androcêntrico, uma abertura para que esse modelo seja questionado.

Katherine Mansfield utiliza-se da rememoração para enfocar a busca de identidade das personagens femininas. A autora lança mão desse mecanismo porque entende que é o caminho que devemos percorrer para re-vermos as nossas relações, as sensações experimentadas, os discursos que foram internalizados para que, a partir dessas experiências, nós possamos nos entender e aprender a administrar os nossos medos, angústias e por fim, tentar destruir "o fantasma".

Contudo, é durante a projeção do pensamento para o futuro que as personagens encontram dúvidas, hesitam. É o momento em que o Anjo da Casa aparece para fazê-las recuar; o momento de inseguranças e de incertezas. Essas mulheres nunca precisaram pensar no futuro porque era assegurado pelo homem: a princípio pelo pai e em seguida pelo marido (que elas não tiveram). Agora elas se encontravam sem esses referenciais. Tal situação era ao mesmo tempo assustadora e excitante.

A pausa das duas personagens no final do conto, após diversas suspensões intermitentes do pensamento, remete a uma cumplicidade. "Esquecer", no contexto, não significa não lembrar-se, mas não ser necessário dizer talvez porque a linguagem não dê conta de traduzir as experiências da mulher. As hesitações e o silêncio aparecem como o lugar da não-palavra:
Josephine ficou em silêncio por um momento. Fixou uma grande nuvem onde antes estivera o sol. Depois respondeu brevemente:

- Eu também esqueci.

O conto de Katherine Mansfield, ao discutir a construção do feminino na sociedade patriarcal inglesa, nos oferece pistas que nos permitem ler o texto em uma perspectiva de gênero, isto é, evidenciando e refletindo sobre uma das relações de poder e de dominação: os lugares feminino e masculino. A autora mostra, pelo final do conto, que a experiência/consciência feminina de sua identidade é um processo que se constrói paulatinamente não com um ritmo freqüente e progressivo, pelo contrário, a autora nos mostra que essa experiência oscila em idas e vindas, isto é, com avanços e recuos, com um olhar no passado e outro no presente.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

A Menina que Tinha Medo do Vento, Nadja Nunes, 2010

O livro de literatura infantil da “debutante” Nadja Nunes traz conteúdo, linguagem e criatividade de quem já é veterana. De forma atraente, a autora cria a história de uma menina chamada Júlia que convive com a sua avó Maria a quem diz ter medo do vento. Em diferentes momentos, a avó tenta afastar o medo da menina, mostrando as diversas contribuições do vento para a vida, mas, relutante, a experiência da menina sobrepõe-se ao discurso convincente da avó, até que esta descobre a razão.

A narrativa nos possibilita diferentes leituras, seja de viés pedagógico seja literário. Do primeiro ponto de vista, a trama mostra as idas e vindas daqueles que tentam compreender os comportamentos das crianças no intuito de alterá-los, no caso da narrativa, o medo que a menina tinha do vento. Já da perspectiva literária, a referência a passagem do sentido conotativo para o denotativo na criança nem sempre é uma tradução simples como é para o adulto. A revelação da menina mostra que a experiência negativa, de isolamento, da solidão, foi devido a uma ação do vento. Quando o menino, Gil, abriu a porta disse: “Foi o vento que fechou a porta”. Neste momento, a personificação através da ação do vento, o sujeito da oração, fez com que a menina o investisse de autonomia e intencionalidade, levando-a a ter medo, já que não se importou com o fato de ela estar do lado de fora, impedindo-a que entrasse em casa.

Nadja Nunes
A autora trouxe o que há de mais particular na experiência linguística da criança que consiste na tradução das camadas de significação que dependem do grau de abstração e da transferência na correspondência dos componentes entre significante e significado alado ao contexto. No caso acima, o vento ganha autoridade de ser vivo, humano, porque ele realiza uma ação própria das pessoas, o que facilita a transferência de sentido por parte da criança, com base em seu acervo.

Outro aspecto importante no livro é em relação às práticas sociais da personagem Júlia, muito comum às crianças urbanas de hoje, que é a ida ao shopping e ao cinema. Raramente vemos essa experiência sendo representada nos livros de literatura infantil, o que aproxima o(a) leitor(a) da narrativa e facilita a sua identificação. Geralmente, o espaço de ação das crianças nas narrativas literárias se passa em casa, no quintal, na rua, na escola ou em uma fazenda, o que limita muito o ambiente de ação e não representa a realidade de muitas crianças.

Por fim, outro elemento importante da narrativa é o traço autobiográfico, aspecto que marca a escrita de muitos escritores, principalmente as mulheres. A autora se chama MARIA Nadja (assim como a avó da narrativa) e a neta se chama JÚLIA (assim como a personagem). A avó também é escritora e ao ouvir a história da menina, resolve escrevê-la.


Se menina deixou de sentir medo? Eu não sei, vale a pena ler para conferir.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Sua Mãe Sabe Mais


 Você é tão frágil como as flores,
Ainda é uma mudinha e muito nova,
Sabe porque estamos nesta torre?
Isso aí, para manter você sã e salva,

Este dia chegaria eu já sabia
Ver que o ninho já não satisfaz,
Mais ainda não, confia coração
Sua mãe sabe mais!

Sua mãe sabe mais
Ouça o que eu digo
É um mundo assustador,
Sua mãe sabe mais
Cheio de perigos, acredite por favor
Homens do mal, galhos envenenados, canibais e cobras,
A praga sim, insetos enormes, dentes afiados
Pare eu imploro já estou assustada,

Mamãe está aqui, vem que eu te protejo
Deixe de sonhar demais,
Colha o trama vem com a mama
Sua mãe sabe mais!

Vá seja pisada por um rinoceronte
Seja assaltada e largada para morrer,
Só sou sua mãe não sei de nada
Eu só te dei banho, troquei, dei carinho

Vamos me abandone eu mereço,
Deixe que eu morra aqui em paz
Antes do fim você vai ver, vai sim!
Sua mãe sabe mais!

Sua mãe sabe mais
Você por sua conta, não vai saber se virar
Toda desleixada, imatura tonta, eles vão te devorar
Crédula, ingênua, levemente suja, boba e um tanto honrada

E ainda por cima olha que gorducha
Eu só digo por que te amo,
Sua mãe entende, quer te dá ajuda
E só um pedido faz!

Não se esqueça, e obedeça
Sua mãe sabe mais.



Fonte: http://letras.terra.com.br/disney/1844932/
 
A letra acima faz parte de uma das músicas da trilha sonora do filme de animação "Enrolados", adaptação do conto de fada Rapunzel, produzido pela Disney em 2011. Se não atentássemos para o contexto, para o lugar de fala, poderíamos arriscar em dizer que a letra desconstruiria uma das representações mais históricas e difíceis de fissurar: a da mãe. A letra mostra as manipulações feitas pela mãe a fim de manter a filha sob a sua dependência e para isso lança mão de subterfúgios como a chantagem emocional, a humilhação, o medo, mas que não podem ser percebidos pelo fato de serem pronunciados pela mãe, atrelado ao discurso afetuoso, criando uma situação paradoxal.

No entanto, o sistema não deixaria passar tamanha irreverência, tamanho desmonte, e logo nos faz lembrar que essa mãe na verdade é uma "falsa mãe", a madrasta que sequestrou Rapunzel quando ainda era bebê. Sendo assim, a música parece caber direitinho na figura da vilã, já que dificilmente ela poderia ser aceita como enunciado da mãe, embora todas elas lancem mão desses argumentos persuasivos...eventualmente. O filme traz, mais uma vez, uma visão maniqueísta da heroína e vilã separando as ações nobres das mesquinhas em duas pessoas distintas, como se fosse possível que uma pessoa fosse totalmente nobre ou totalmente avarenta. Reforça-se deste modo estereótipos seculares.

SIMPÓSIO INTERNACIONAL LITERATURA, CULTURA E SOCIEDADE da UFV

Período: 08, 09 e 10 de novembro de 2011
Local: Viçosa, MG.
Informações e inscrições: http://www.literaturaufv.com.br/
Temas para apresentação de trabalhos:

- Literatura e outros campos de conhecimento;
- Estudos de Literatura Comparada e de Crítica da Cultura;
- Literatura e Estudos de Gênero;
- Leitura e ensino de literatura;
- Literatura, Memória e História;
- O imaginário mítico;
- O Pós-colonialismo na Literatura;
- Margens e fronteiras do literário.

Conferencistas:

Prof. Dr. Carlos Reis (Universidade de Coimbra)
Profa. Dra. Orna Messer Levin (UNICAMP)
Profa. Dra. Ângela Beatriz Carvalho de Faria (UFRJ)
Profa. Dra. Ivete Walty – (PUC Minas)
Profa. Dra. Márcia Marques Morais (PUC Minas)
Profa. Dra. Lyslei Nascimento (UFMG)
Prof. Dr. Leonardo Mendes (UERJ)
Profa. Dra. Solange Yokozawa (UFG)
Prof. Dr. José Luiz Foureaux (UFOP)
Prof. Dr. Luis Maffei (UFF)

Promoção:
Universidade Federal de Viçosa
Departamento de Letras
Programa de Pós-Graduação em Letras – Área de Estudos Literários
Telefone: 031 3899-1583
Apoio:

FUNARBE – FUNDAÇÃO ARTUR BERNARDES DA UFV
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE LETRAS - UFV
CAPES
FAPEMIG
Coordenação:

Prof. Gerson Roani – UFV
Prof. Felipe dos Santos Matias – UFV
Prof. Rodrigo Machado – PPGLETRAS-UFV
Prof. Renato Dering – PPGLETRAS-UFV

AGRADECIMENTOS

Agradeço a todas(os) que têm postado no comentário sobre as minhas contribuições à nossa literatura brasileira, seja para adultos ou para crianças e adolescentes.
Este feedback é importante, pois serve de bússula às blogueiras com pouco traquejo neste caminho, como eu.
Estou sempre aprendendo.
Obrigada!

E-mail: pequenas feministas

Pequena feminista,

respondendo ao e-mail
Sei que na sua idade é difícil entender algumas práticas sociais enraizadas na nossa cultura, principalmente porque, apesar de todo acesso informativo promovido pela internet, os textos são fragmentados e muitas vezes não trazem uma relação entre o presente e o passado. Você me disse que não gosta da disciplina História em seu Colégio, mas procure enxergar os efeitos de hoje como decorrentes de causas provocadas pelas pessoas em épocas e lugares anteriores.

Quando você me pergunta sobre as razões de algumas mulheres ficarem sempre com as tarefas domésticas, mesmo trabalhando fora, isso me conduz à história. Veja como ela é importante. Quando a indústria começou a se desenvolver e precisava de pessoas para executar as atividades salariadas, houve então a divisão sexual do trabalho. A revolução que aconteceu no século XIX, quer dizer aquela ocorrida entre os anos de 1801 e 1900 (sua professora deve ter falado disso), na Europa, mudou muita coisa na vida das pessoas e a mudança mais radical foi a divisão sexual do trabalho: as mulheres foram incentivadas para o trabalho da casa, não-remunerado, e o homem para o trabalho na rua, este remunerado. Esta configuração já coloca uma ideologia de arranjo conjugal baseada na reprodução (casal de sexos diferentes unidos pela lei humana e divina) que teria o nome de família nucelar ou burguesa. Não precisa dizer que o conhecimento, as leis sempre foram dominadas pelos homens, então eles as escreveram com base nos interesses deles.

Na verdade, a mulher, na condição de esposa, não era uma inativa, ela era uma peça na engrenagem da indústria, porém não recebia salário, mas, sim, o marido. A indústria pagava ao marido pela atividade laboral e o marido “pagava” à mulher com o provimento domiciliar (nunca com dinheiro),. Desta forma incluía a esposa como trabalhadora indireta da indústria – porque ela tinha que dar condições para o marido voltar ao trabalho no dia seguinte, alimentado e fortalecido para que a sua energia fosse transformada em lucro para a indústria. Desta forma, a esposa participa da lógica do sistema de exploração capitalista e é duplamente ludibriada: pelo empresário e pelo marido (este de forma inconsciente, às vezes). Logicamente que algumas tentaram tirar proveito da situação, desenvolvendo estratégias de risco que poderiam lhe causar a execração pública. A grande maioria se resignava e posavam de rainhas em um reino que nunca foi seu, mesmo o da casa (a sua autoridade vai até um limite permitido, depois disso ela é lembrada que é mantida, sustentada pelo marido).

Apesar da distância no tempo e no espaço, esse modelo cruzou mares e foi bastante difundido pelos romances, revistas, discursos pedagógicos (escola e religião) tornando essa realidade natural, inquestionável, sendo exposta definitivamente por mulheres que percebiam a manobra, como: Virginia Woolf, Jane Austen, Simone de Beauvoir, Betty Friedan, Margareth Mead, Kate Millet, entre outras, todas do século XX. Há também as excelentes discussões de Olympe de Gouges que no século XVIII questionou a política androcêntrica da revolução francesa e, por isso, foi guilhotinada.

Assim, as mulheres de hoje, mesmo com todas as mudanças sociais, repetem modelos seculares, com poucas variações. A diferença é que hoje ela tem o teto e o dinheiro (Woolf dizia que uma mulher para se emancipar deveria ter um teto e 500 libras, ou seja, propriedade e uma profissão), mas porque então elas se colocam em posição tão humilhante diante do homem? Por que aceitam que gritem com elas? Que lhes imponham as suas vontades mesmo que estas as violentem? Por que elas confundem valorização com desvalorização?

Como vê, a sua pergunta é a pergunta que muitas mulheres adultas que estudam a vida das mulheres se fazem.

Na sua opinião, o que faz a mulher agir desse jeito?

Ah, mudei de e-mail. Escreva para: ltleiro@gmail.com ou, se quiser, pode postar no comentário a sua resposta, aqui mesmo no blog.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

NUNCA DESCUIDANDO DO DEVER, Marina Colasanti

Jamais permitiria que seu marido fosse para o trabalho com a roupa mal passada, não dissessem os colegas que era esposa descuidada. Debruçada sobre a tábua com olho vigilante, dava caça às dobras, desfazia pregas, aplainando punhos e peitos, afiando o vinco das calças. E a poder de ferro e goma, envolta em vapores, alcançava o ponto máximo da sua arte ao arrancar dos colarinhos liso brilho de celulóide.

Impecável, transitava o marido pelo tempo. Que, embora respeitando ternos e camisa, começou sub-repticiamente a marcar seu avanço na pele do rosto. Um dia notou a mulher um leve afrouxar-se das pálpebras. Semanas depois percebeu que, no sorriso, franziam-se fundos os cantos dos olhos.

Mas foi só muitos meses mais tarde que a presença de duas fortes pregas descendo dos lados do nariz até a boca tornou-se inegável. Sem nada a dizer, ela esperou a noite. Tendo finalmente certeza de que o homem dormia o mais peado dos sonos., pegou um paninho úmido e, silenciosa, ligou o ferro.
Marina Colasanti, In.; Contos de Amor Rasgados, 1986)

CASO ANTIGO , Helena Parente Cunha

Quando o conheceu, ela tinha vinte anos. Romancista, de renome se fazendo, ele se tornou para ela o sonho realizado em se realizará. Eles se encontravam uma a duas vezes por semana. Paixão, ela reverberava. Fosforescências. Ele dizia claramente, não queria se casar, não queria se juntar. Não gostava de iludir. Cada qual em dividido para se somarem no mais e no tudo. Assim ele dizia. Assim ele queria. Assim ela assentia. Na esperança de esperar, assim ela esperava. Um dia, quem sabe? Eles casariam. Os encontros semanais. Resplandecência. Durante vinte anos ela viveu feliz, à espera do que esperava. Consonâncias , as ressonâncias. Uma vez, como tantas vezes, ele viajou. Desta vez, por duas semanas. Como tantas vezes, ele não escreveu. Ao contrário do que fazia outras vezes, quando ele voltou não telefonou. E não atendeu quando ela ligou. Dissonâncias? Reacreditada, ela se esperou. Palidescências. De manhã, debaixo da porta dela, um envelope com a letra dele. um bilhete. Obscurescência. Estava tudo acabado. Ele acabava de se casar.
(Helena Parente Cunha, Cem Mentiras de Verdade, 1985.)


Esse conto de Helena Parente Cunha pode ser visto dentro de uma tradição literária latino-americana do gênero microconto cuja escrita sintética, sugestiva e poética abre possibilidades para maior reescritura da leitora (ou leitor), devido a sua alta carga evocativa. O conto acima, por fazer parte de uma produção datada dos anos 80, faz referências ao androcentrismo presente nas relações de gênero ao focalizar o poder do homem sobre a mulher, transformando-a, quando jovem, em uma pessoa ingênua, sem malícia e quando madura em uma mulher que, embora tenha perdido a ingenuidade inicial, precisa acreditar ou até mesmo apostar em suas escolhas. No entanto, essa "escolha" é diretiva, já que a sociedade patriarcal, com as suas instituições representativas e seu discurso, aprisiona a mulher dentro de uma cela de preceitos morais que dificilmente consegue escapar. A escrita das mulheres da geração de 60, em razão desse momento de ruptura com uma ordem altamente hierárquica, tendem a denunciar e problematizar as situações sociais contraditórias geradas pelo pater potestas.
 
No conto, observa-se que a função do homem é a de escritor, apontando para um traço importante do convencimento: o discurso, a linguagem metafórica, tão ao gosto dos romances, o jogo com as palavras, a manipulação das simbologias e, sobretudo, as camadas implícitas do dizer. Ela, com vinte anos, envolvida pelo código do amor romântico, com os seus mitologemas, incapaz de entender a linguagem do outro (porque não fora educada para isso) sucumbe às promessas, uma arma poderosa para manter a esperança no outro e, consequentemente, o poder sobre ele.

terça-feira, 12 de julho de 2011

Pagu - Ordem do Mérito Cultural

O Ministério da Cultura informa que está aberto o prazo para a inscrição das propostas de indicação à Ordem do Mérito Cultural para o ano de 2011. O tema central da celebração desta edição será Pagu- Sonho-Luta-Paixão em homenagem a Patrícia Rehder Galvão, conhecida pelo pseudônimo de Pagu, escritora e jornalista brasileira que teve grande destaque no movimento modernista iniciado em 1922.

Criada em 1995, pelo Ministério da Cultura, a Ordem do Mérito Cultural é o reconhecimento do Governo Federal a personalidades, grupos artísticos, iniciativas e instituições que se destacaram por suas contribuições à Cultura brasileira.
(...)
As indicações podem ser enviadas para o site do Ministério da Cultura até o dia 22 de julho, mediante o preenchimento do formulário específico disponível no endereço eletrônico do MinC , ou pelos Correios, após download do documento ser preenchido e encaminhado para o seguinte endereço:

Ordem do Mérito Cultural 2011
Ministério da Cultura
Assessoria de Comunicação Social
Esplanada dos Ministérios, Bloco B, 4º andar
CEP 70068-900 Brasília – Distrito Federal

Dúvidas e informações:
E-mail: omc2011@cultura.gov.br
Tels.: (61) 2024- 2406, com Eliane Rodrigues
 
Texto trascrito e adaptado do site: http://www.cultura.ba.gov.br/2011/06/28/minc-ja-esta-recebendo-indicacoes-para-o-premio-que-homenageara-este-ano-a-escritora-pagu/

sábado, 11 de junho de 2011

Mãe Bela, Mãe Fera, Marta Lagarta, 2010, ilustração Sami e Bill, Ed. Prumo

Os livros de literatura infantil estão cada vez mais graficamente impactantes. Algumas escritoras (e escritores) têm percebido com muita acuidade o perfil de leitora (e leitor) potencial, imerso em um mundo no qual os apelos visuais, estéticos, muitas vezes sobrepõem-se ao ético. O que não acontece com o livro de Marta Lagarta que busca coordenar os elementos estéticos e éticos e trazer para o seu leitor uma literatura divertida, reflexiva, dialética.

Em Mãe Bela, Mãe Fera, a autora nos dá uma ideia do que representa a mãe real, aquela que acalenta e ao mesmo tempo repreende, desmitificando a idealização da mãe forjada pelo discurso da modernidade que vincula a maternidade a signos que evocam bondade, generosidade, candura, entre outros. No livro de Lagarta, escrito com fonte grande e arredondada, a mãe que se apresenta é “maga amarga” e “fada açucarada”, “grita descontente” e “brinca sorridente”, “balanço que vai e vem” e “tombo também”, ela concentra ao mesmo tempo alegria e tristeza para o filho. Daí o mote que se repete ao longo do texto: “como pode ser assim ora boa ora ruim?” Se é verdade o que as teóricas e teóricos da literatura infantil apontam, inclusive Regina Zilberman, uma das estudiosas deste gênero, ao lado de Nelly Novaes Coelho, Marisa Lajolo e outras, de que o adulto escreve para a criança que ele inventa, da mesma forma podemos dizer que o escritor também se inventa, enquanto adulto, para a criança. Neste caso, em relação ao texto em questão, é a figura da mãe, a sua representação, que é enfatizada para o leitor-criança, mostrando-se que a maternidade não é uma divinização da mulher, mas incorpora a sua humanidade com toda a sua complexidade. Se o ser humano é caracterizado pelo conflito diante de si e do mundo, a maternidade não poderia escapar a essas tensões próprias da condição humana porque, ao ser assumida, acaba fazendo parte dela.

“Minha mãe tem tantos jeitos
Que é difícil entender
Uma hora ela é um modo
Mas depois deixa de ser”


Apesar de ser escrita pelo adulto, a voz narrativa é da criança, da filha, que vê alternando-se em seu cotidiano “a mãe semente” e a “mãe serpente”. Com este recurso, a transferência é imediata porque dá-se pelo processo de identificação da leitora (ou leitor) com a voz narrativa, as duas possui o mesmo status. O texto utiliza a forma em verso para dar ritmo a leitura, imprimindo-lhe ludicidade durante o fluxo da narrativa e reflexividade através dos versos repetidos ao longo do texto: “como pode ser assim ora boa ora ruim?”A dúvida suposta decorre da ideia de que a mãe deveria ser sempre boa? De onde vem esse imaginário? Por que esta imagem é internalizada a ponto de causar conflito? Estariam nos contos de fada? Se observarmos, a madrasta nas histórias infantis carrega sentidos associados à maldade, enquanto a mãe, em geral biológica, antagonicamente, evoca bondade, o que certamente pode ajudar a construir a representação da mãe associada à suprema benevolência. Quando a mãe escapa a essa figurativização, ela é imediatamente chamada de “madrasta”, como se fosse uma impostora. Existe também uma representação de maternidade que se relaciona ao cristianismo, na figura da Virgem Maria, o que contribui muito para a visão sublime de mãe, principalmente em países de colonização ibérica.

O texto de Marta Lagarta, que já traz poesia em seu próprio nome, opera com elementos já sedimentados pela cultura, destaque para o maniqueísmo bem versus mal. No entanto, as duas forças antagônicas não estão separadas do sujeito, ao contrário, faz parte dele e desta forma a história provoca uma fissura na base do pensamento que separa o sujeito bom do mal como se fosse possível para uma pessoa, ao longo de sua existência, ser 100% boa ou 100% ruim.
“Ora boa ora ruim
Feito história encantada
Eu agora chego ao fim:
mamãe é conto de fada!”

Além do aspecto escrito, faz parte dos estudos da literatura infantil, a análise das imagens e a relação com a narrativa. Os ilustradores Sami e Bill trazem formas humanas – da mãe e da filha – predominantemente circulares, evocando acolhimento, graciosidade, o que parece trair a concepção dialética do texto escrito, mas a circularidade das formas é proposital e tem mais a ver com a recepção do leitor, já que as formas arredondadas são mais atraentes do que as angulares. No entanto, as formas não são muito harmônicas, partes do corpo são desproporcionais, dando maior “movimento” à imagem, uma forma inteligente de inserir dinamicidade ao texto. As cores, predominantemente quentes (amarelo e vermelho), tomam toda a página (o texto verbal é escrito sobre o cenário), contribuindo para maior adesão da leitora (leitor) ao texto.
Mãe bela, mãe fera é um exemplo de literatura que se afasta às narrativas pedagogizantes que assolam a literatura infantil. É criativa, colorida, lúdica, inteligente e reflexiva.



A Ilha Perdida, Maria José Dupré, 1973

Na fazenda do Padrinho, perto de Taubaté, onde Vera e Lúcia gostavam de passar as férias, corre o rio Paraíba. Rio imenso, silencioso e de águas barrentas. Ao atravessar a fazenda ele fazia uma grande curva para a direita e desaparecia atrás da mata. Mas, subindo-se ao morro mais alto da fazenda chamavam de Ilha Perdida. Solitária e verdejante, parecia mesmo perdida entre as águas volumosas. (Dupré, 1973, p. 1)

Estranhei quando recebi, das mãos do vendedor, o livro de Maria José Dupré: maior, colorido e em papel couché, o livro parecia outro, muito diferente daquele publicado nos anos 70 e ao qual tive acesso quando estudante. De qualquer sorte, o acolhi como se acolhe a memória ou os prazeres que ela evoca. Foi o primeiro livro que li na escola e que (finalmente) a professora acertou. E como era difícil acertar. Naquele tempo, a leitura dos clássicos era imprescindível para alguns professores, como se nós leitores tivéssemos saído dos romances do século XIX, em que as crianças lêem desde a mais tenra a idade os clássicos. De onde uma boa parte veio, inclusive eu, a leitura de livros não era muito freqüente, muito embora meus pais fossem leitores ávidos de jornais. Os livros circulavam, mas eram poucos e a televisão já havia ocupado os nossos lares. Fui uma leitora ávida de filmes, os clássicos, que passavam à tarde na televisão.

Na escola, a professora indicou A Ilha Perdida e comecei a gostar de literatura, muito embora não fossem os “clássicos”. Li coleções de livros escritos para adolescentes, do tipo mistério e detetivescos, como Os Seis e Diana (não me recordo os detalhes), mas eram livros que eu lia, mas não me recordo de uma história deles. Aconteceu o mesmo, mais tarde, com os livros de Sidney Sheldon, li vários, mas não me lembro de nenhum deles.

No entanto, A Ilha Perdida permaneceu e tornou-se referência para mim quando o assunto é prazer em ler. O livro narra a história de uma ilha misteriosa e que por guardar tanto mistérios, cai na curiosidade de Eduardo e Henrique (por sinal, nomes do meu pai e do meu tio), dois meninos que eram primos de Quico e Oscar, filhos do Padrinho, e que nas férias iam para a fazenda. Havia também Vera e Lúcia (esta, minha xará), mas apesar do romance começar com a voz narrativa se dirigindo a elas, quase não aparecem ao longo do texto. Os protagonistas são Eduardo e Henrique. Talvez fosse ainda arriscado apresentar um romance para adolescentes em que as protagonistas fossem meninas aventureiras, desafiadoras, meninas que ultrapassassem os limites impostos pela obediência paterna, na figura do Padrinho. Do ponto de vista ortodoxo de gênero, esse papel caberia aos meninos, o que de fato acontece. Eduardo e Henrique atravessam o rio e conhecem a Ilha. A escritora, com maestria, consegue fidelizar o seu leitor desde o início, aguçando a sua curiosidade e conduzindo-o e transportando-o imediatamente para o texto. O leitor é o terceiro tripulante na viagem, além dos dois meninos, que testemunha as peripécias dos personagens, suas dores e alegrias quando se veem sozinhos na Ilha. O retorno à fazenda foi interrompido por uma tempestade, levando-os a permanecerem mais tempo do que planejado na incógnita ilha. Nada mais emocionante do que acompanhar as descobertas dos meninos, não só em relação a Ilha, mas sobre a vida, já que precisam lidar com os medos e ter que superá-los. A Ilha se apresenta como metáfora do mundo, desconhecido para os adolescentes que, muitas vezes longe do adulto, ou dos familiares, precisam interagir com ele, conhecendo-o, para melhor participar dele. A separação das personagens foi um recurso interessante, pois acentuou a carga dramática e, também, o sentido de individualidade e de independência. Estar sozinho representa a unicidade da experiência, já que mesmo estando com outras pessoas, a experiência é única, individual, do sujeito, percebida de forma singular e este sentido ficou muito bem demarcado quando as personagens se separam acidentalmente.

Na Ilha, mora Simão, um homem que havia se afastado da cidade e foi morar na Ilha. Ali, próximo dos animais, Simão redescobre a humanidade e Henrique participa desse momento: “Henrique nunca vira um animal chorar e ficou admirado olhando a cena.”. A voz narrativa apresenta ao leitor um Simão filósofo que questiona a conduta humana quando mata um animal:

Os caçadores não têm coração. Matam um pobre animal inofensivo pelo prazer de matar. Veja você: matar um bichinho tão inocente, tão bonito, tão delicado. Para quê? Se fosse para saciar a fome, ainda bem, mas é para se divertir que eles matam. Matam por crueldade. Querem apostar para ver quem mata melhor, quem mata primeiro. (DUPRÉ, 1973, p. 94)

A rispidez de Simão em relação a Henrique ao longo da narrativa remete o(a) leitor(a) a essa experiência negativa, vivida na cidade:

- Olhe, menino. Já vivi entre homens e sei que eles juram falso. Muitas vezes fui enganado por ele, agora não me enganam mais. Não creio em sua palavra. (DUPRÉ, 1973 p. 82)
A relação entre Simão e Henrique, a partir da convivência, vai se modificando e uma amizade começa a se formar. Neste processo, pactos de confiança, exercícios de tolerância, generosidade vão sendo construídos, tornando a jornada de Henrique um prazeroso aprendizado sobre a vida:Somente neste trecho, a narrativa leva o(a) lei r(a) à reflexão sobre as razões que levam o sujeito a tirar a vida de outro ser vivo. A assimetria entre forte x fraco como base de sustentação das relações de poder, os valores competitivos como direção para a conduta humana e a banalização da vida através da morte por diversão, aparecem como traço que caracterizam o homem urbano, o que nos remete, de certa forma, ao mito rousseauniano do bom selvagem:
-Escute uma verdade, Henrique: quanto mais culto um povo, melhor ele sabe tratar os inferiores e os animais. Isso demonstra grande cultura e você nunca deve esquecer. (DUPRÉ, 1973 p. 99)
O tom pedagógico aparece, mas de diferentes formas: através do discurso, do diálogo entre Simão e Henrique, através das práticas, do manejo das coisas, e da observação.

Existem outras questões que são tratadas neste livro que, a meu ver, é uma referência para a literatura infanto-juvenil brasileira: a fluidez da escrita, a composição dos núcleos dramáticos e a forte carga imagística do texto conferem à Ilha Perdida o status de clássico da nossa literatura brasileira infanto-juvenil.

A autora: (Botucatú 1898- Guarujá 1984)

Fundadora, ao lado de Monteiro Lobato, Caio Prado Jr. Leandro Dupré e Artur Neves, da editora brasiliense, Maria José Dupré se estabeleceu como romancista para o público adulto e infanto-juvenil. É autora dos romances Éramos Seis, Gina, entre outros.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

UMA NOVA MULHER, MARINA COLASANTI, 1980

“Sem independência econômica, não existe independência”
“Uma das grandes, embriagadoras vantagens da independência é o poder de escolha”  (Marina Colasanti)

Estava em débito com as postagens, pois estou sem internet em casa o que dificulta as atividades de blogagem.

O livro que cito hoje não é novo, foi escrito em 1980, pela escritora etíope Marina Colasanti, cujo título já aponta para uma questão de gênero, Uma Nova Mulher. A escritora apesar de não ter nascido em terras brasileiras, pois veio com 11 anos para o Brasil, transformou-se em uma das mais expressivas escritoras contemporâneas brasileiras.

Neste livro, Colasanti inicia a sua reflexão sobre a ‘nova mulher’, tematizando a questão da independência para as mulheres que foram educadas para serem esposas e mães. Através do texto Independência, que bonita que é, a escritora põe em questão a valorização do casamento pela sociedade brasileira, tornando privilegiadas as meninas casadoiras e paralelamente desprestigiadas aquelas que, embora não eliminassem a possibilidade de se casarem, não coloca o matrimônio como prioridade ou fim último:
Mas a heroína da classe não era eu. Eram as duas meninas, que desde o início do ano exibiam as suas alianças e certezas no futuro, enquanto as outras, menos afortunadas, batiam as estacas de sua segurança na escolha de um bom rapaz, namorado firme. Não era costume, não ficava bem uma moça de família pensar em independência. (COLASANTI, 1980, p. 11)
Colasanti levanta algumas questões que podem ter dado origem às confusões que permeiam os discursos, ao associar ‘dependência com carinho’. A escritora desmistifica a ideia de que ser solteira não é ser só, isolada das pessoas, alijada do exercício da afetividade e salienta a importância de romper os laços de dependência em todos os níveis, sobretudo o financeiro e o emocional. Esta ideia está articulada a outra questão que a escritora traz em seu texto, ao articular a dependência à infantilização, mostrando a tendência das mulheres dependentes em colocar a culpa nos outros: “quando a gente é independente tem mesmo que arcar com as próprias culpas, e tentar entendê-las, conviver com elas” (COLASANTI, 1980, p. 12).

A independência das mulheres é mais difícil, reconhece a escritora, por isso, deve ser alçada tendo em vista alguns aspectos: 1) maturidade financeira, pois sem dinheiro a independência não se estabelece; 2) manutenção dos laços familiares, pois o apoio da família contribui para uma emancipação menos traumática, embora a escritora reconheça que nem sempre seja possível; 3) maturidade emocional, pois, de acordo com Colasanti, pode-se ser dependente, mesmo saindo de casa, ou independente sem precisar sair. A independência é “uma forma de se colocar diante da vida”. (COLASANTI, 1980, p. 13)

A autora desmistifica ainda a ideia de uma independência relacionada ao estado civil, pois “pode-se, portanto (...) ser independente e ser casada, ou ser independente e morar com um rapaz” ou, complementando o raciocínio, embora a escritora não enuncie, ser solteira e ser dependente. Ficou no interdito, já que escrever sobre a dependência das mulheres solteiras, nos anos 80, em pleno momento de reverberação das conquistas feministas, poderia soar conservador.

Colasanti enfatiza a questão financeira como condição imprescindível para a independência, pois

Dependentes, amarradas a decisões e interesses familiares, muitas mulheres casam até hoje sem amor, apenas por conveniência, para garantir o mantenedor de papel passado. E por dependência econômica, por não saber, poder ou querer prover a si mesmas, um número assustadoramente grande de mulheres se mantêm presas a casamentos errados, dolorosos e às vezes até humilhantes. (COLASANTI, 1980, p. 14)
Logicamente que naquele momento, as mulheres da geração de 60, quase todas casadas ou divorciadas, vão focalizar as relações familiares, que dão sustentação à assimetria de gênero, um dos alicerces do patriarcado.

Colasanti desmistifica também a questão da profissionalização, mostrando que ter uma profissão não garante a independência, embora seja importante para dar acesso a segurança financeira. O que a escritora defende é o conhecimento de mundo, isto é, “saber em que mundo se vive, quem são as pessoas que nos rodeiam, quais são os grandes questionamentos do ser humano (...) são os conhecimentos que dão à nossa independência uma arquitetura mais sólida” (COLASANTI, 1980, p. 15). Neste sentido, a autora mostra que é importante saber resolver pequenos embaraços cotidianos, como trocar pneus, botar uma bucha na parede, ainda que as mulheres não precisem necessariamente executá-los,

mas é um descanso saber que se for preciso a gente mesma faz, sem ter ficar apatetadas à beira da escada ou na porta de casa, esperando que um homem salvador caia dos céus para resolver estes problemas “insolúveis” (Idem, Ibidem)
Uma mulher independente, segundo Colasanti, não pode ser passiva, vir “à reboque de alguém”, o conhecimento é fundamental para que os assuntos, fruto do diálogo entre o casal, sejam abalizados a partir dos dois pontos de vista. É importante que se diga que o leitor ou leitora de interesse da escritora é o da classe média, a qual ela pertence, e que, em razão disso, a questão do casamento ainda é um objetivo de muitas, não se cogitando, por exemplo, outros arranjos conjugais. Para Colasanti, o problema está ainda na mulher que vê a profissão como uma passagem, não vê como carreira, com uma visão de futuro e de inserção social. Algumas mulheres deixam de trabalhar quando se casam, reforçando a ideia do trabalho como exercício para as mulheres solteiras. O casamento passa a dar acesso à prática de diferentes profissões: arrumadeira, camareira, cozinheira, lavadeira, enfermeira, decoradora, costureira, bordadeira, entre outras, em troca a mulher gozaria do status de esposa, herdeira da metade do patrimônio (se tiver filhos), após a morte do marido, mas correndo o risco do divórcio que a atrelava à pecha de mulher lúbrica, por isso a sua conduta teria de ser enquadrada ao sistema.

Concluindo o seu texto, Colasanti se reporta a algumas falas que circulam na sociedade, oriundas dos medos dos homens da mulher independente e a cada um delas a autora descarta a possibilidade da mulher vir a se interessar pelos perfis de homens que se apresentam.

1) Os homens que temem a concorrência. “que a mulher nenhuma deve interessar”.
2) Os homens que temem a liberdade da mulher ir e vir. “quem os quer?”
3) Os homens que temem a mulher liberada sexualmente. “E estes para que servem?”

A autora ainda provoca a sua leitora (ou leitor) dizendo que a independência traz benefícios à mulher porque funciona como “peneira”, isto é, ajuda a selecionar os parceiros conjugais. Por fim, a propaganda chega a ser metaforizada em linguagem de mercado: a escritora, uma das consumidoras, testemunha a eficiência do produto, a independência, e ao contrário de um vendedor, ela não detém o produto, mas nos informa que “ele é acessível, nacional e está bem ao alcance de cada uma”. (COLASANTI, 1980, p. 18-19).

Em pleno backlash, momento pelo qual passamos atualmente, quando vemos algumas performances conservadoras nas práticas sociais, vale a pena resgatar os textos das escritoras da geração de 60, pois eles foram importantes tanto do ponto de vista literário quanto pedagógico, servindo como ponto ou contraponto no processo dialógico da leitura.

Questões salientadas por Colasanti ainda podem ser sentidas hoje na vida de muitas mulheres, independente da classe social. A dependência econômica e emocional ainda é um entrave a ser superado diariamente, atrasando o processo de desenvolvimento da mulher. A mídia, a literatura, enfim, os discursos que operam com o simbólico podem libertar as mulheres das ciladas de gênero ou podem trancafiá-las eternamente, limitando-as e reduzindo-lhes a existência humana. Uma mulher dependente não experimenta as suas potencialidades humanas porque nunca ultrapassa os limites estipulados para ela, e o pior é que elas acabam se convencendo de que a vida é assim mesmo: se asas, sem vento, sem horizontes.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

ONDE ESTÃO AS MENINAS NA LITERATURA INFANTIL?

Os anos 80 foram profícuos para a produção literária de autoria feminina, da mesma forma que foi para a literatura infantil. É comum no metier a referência ao "boom" da literatura infantil neste período, sobretudo das produções das escritoras como Ana Maria Machado e Ruth Rocha entre outras. Algumas são eminentemente escritoras dos pequenos, enquanto outras ocasionalmente percorrem esse caminho, como Marina Colasanti, Clarice Lispector, por exemplo.

Uma análise dos livros de literatura infantil nos últimos vinte anos, nos dá uma ideia de como a questão de gênero ficaram de fora, na medida em que as personagens eram quase todas masculinas, exceto os contos de fada. Principalmente as narrativas juvenis que geralmente elegem temas de aventura e nos quais as meninas só aparecem como coadjuvantes. Lembrei-me da Ilha Perdida, de Maria José Dupré, escrito em 1944, centrado em duas personagens masculinas, ainda que faça referência a duas meninas.

Nos anos 80, temas mais engajados socialmente começam a embasar algumas histórias, até porque o momento histórico era favorável. O movimento feminista já tinha deixado as suas marcas na sociedade e havia uma tendência de a literatura traduzir o que acontecia nela. Embora os livros não trouxessem explicitamente uma discussão sobre os papéis sociais masculinos e femininos, eles traziam protagonistas meninas com atitude mais altiva e questionadora.

O livro de Ruth Rocha, Quem tem medo de dizer não, é um exemplo de narrativa que se aproxima de uma literatura infantil feminista porque traz uma menina que muda de atitude ao perceber que, ao não saber dizer não, acaba se prejudicando, sendo explorada e oprimida pelo adulto que internaliza um modelo patriarcal hegemônico de tratar as meninas.

O final é muito interessante porque no lugar de inverter, o que poderia ser uma cilada, a autora opta por um desfecho mais flexível, sem radicalidades. A menina teria de saber quando dizer sim e quando dizer não, sugerindo que a relação com o outro depende de uma avaliação da situação, o que requereria mais sensibilidade e reflexão do sujeito.
Narrativas como essas não são muitas. Diria até que é uma exceção, da mesma forma que raramente encontramos narrativas criativas, inteligentes e menos óbvias quanto à sua proposta. Concordo com Ruth Rocha quando fala que o humor se perdeu da literatura infantil, ao que acrescento a engenhosidade com a palavra. Pode-se escrever uma literatura feminista para crianças sem que a personagem necessariamente precise fazer uma auto-declaração ou que se apresente como uma ativista. 

A literatura infantil pode ser uma literatura engajada para os pequenos, desde que mantenha a sua engenhosidade literária, pronta para insinuar, sugerir muito mais do que dizer às claras sem provocar na criança a necessidade de pensar, evocar a sua imaginação. 
Ruth Rocha presenteia a leitora com uma protagonista que emancipa-se ao se perceber oprimida por uma educação de menina "boazinha", que deve aceitar tudo sem reclamar e sofrer calada. 
Pergunto-me: será que as meninas são assim na vida real? De que meninas estamos falando? Se as meninas de hoje não aceitam mais as imposições de forma silenciosa, precisamos escrever sobre como as meninas estão sendo tratadas quando resolvem dizer "não". Talvez Ruth Rocha (ou outra escritora) precisasse escrever a continuação da história da menina que também sabe dizer "não" quando necessário e aí poderíamos prosseguir com uma literatura infantil engajada, criativamente engajada.