segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Kuami ou a educação FEMINISTA PELA ANCESTRALIDADE

Lúcia Tavares Leiro
UNEB/Salvador
 

Resumo: apresentar a narrativa Kuami, de Cidinha da Silva, como uma proposta de educação feminista pela perspectiva da ancestralidade, isto é, um feminismo que fala do lugar da epistemologia iorubana, preservada na Bahia pelos terreiros de candomblé,  que destaca o protagonismo das mulheres na construção de uma prática civilizatória.  Neste artigo, usarei o conceito de ancestralidade, de diáspora, de feminismo e enlaçarei ao conceito de educação por um viés emancipatório, libertador.  

Nos estudos literários, as teorias feministas já são bem conhecidas, haja vista a própria existência deste Grupo de Trabalho que há exatamente 30 anos vem sendo organizado por pesquisadoras de todo o país. O GT tem o intuito de reunir pesquisadoras e pesquisadores que em pequenos grupos temáticos compartilham os resultados de suas pesquisas sobre a mulher na literatura. Chamo a atenção para a literatura destinada às crianças, muitas vezes infantilizada tanto pelos escritores quanto pela própria crítica literária, relegando-a a segundo plano, mesmo quando o escritor canônico se aventura em escrever para este público.  Apesar da existência dos grupos de trabalho e de pesquisa nos cursos de Letras e de Pedagogia, o componente curricular nestes cursos, quando aparece, é ofertado em um único momento em todo o curso. Para minimizar, os docentes que possuem pesquisa nesta área fazem um recorte dentro da grade curricular de componentes que não são específicos da literatura.  

Por estar lecionando no curso de Pedagogia, venho fazendo uso das categorias de análise das teorias feministas, como o gênero, para investigar a literatura escrita por mulheres para crianças, tentando aproximar as escritoras das discussões feministas que alicerçam epistemologicamente este GT. Na literatura infanto-juvenil, as problematizações de gênero no plano ficcional não são tão frequentes, com raras exceções para Pena de Pato de Tico Tico, Dona Baratinha, Senhora dos Mares, de Ana Maria Machado; Quem tem medo de dizer não?, de Ruth Rocha, Mamãe Bela, Mamãe Fera, de Marta Lagarta, Menino Nito, de Sônia Rosa, entre outras produções. Nestes textos, tomando como base as personagens protagonistas, as representações de gênero são questionadas a partir dos estereótipos de feminilidade e de masculinidade forjados amplamente pelos contos de fada. Essas representações contribuíram para a formação de um comportamento de gênero ao longo de séculos, mas que após os anos 60 passaram a ser questionadas por escritoras e críticas feministas. Do ponto de vista ficcional, as escritoras em diálogo com esse sistema de gênero, reinscreveram nos corpos sexuados outras significações. Por isso, não é raro encontrarmos nas narrativas literárias (e fílmicas) o jogo da inversão, esforço em separar o gênero do sexo, pelo menos da forma que foi concebido pelo discurso hegemônico. A inversão pode ser lúdica, mas não implode com a estrutura binária e assentada no sexo, afinal inverter é realocar o gênero nos corpos sexuados.  No entanto, nas narrativas para crianças, este é o jogo que mais vemos para problematizar as relações de gênero. 

As teorias feministas modernas e pós-modernas foram desenvolvidas por sujeitos de realidades sociais, culturais, históricas e geográficas distintas, mas que mantinham como referência a memória compartilhada. Mas de que memória nós estamos falando? Ao construirmos a nossa linha do tempo, para usar uma expressão atual, encontramos vivências de sujeitos baseadas em valores distintos do código hegemônico, com outras formas de olhar, de ser e de pensar. Pessoas que cresceram ouvindo de suas avós narrativas em uma linguagem simbólica, cifrada, às vezes incompreensível, envolvida de mistério e poder. Pessoas que compartilham  outras estéticas, outros sabores e afetos. Quando me refiro a um feminismo ancestral estou me reportando a essas vivências de mulheres que, em observância aos ensinamentos ancestrais, buscam proporcionar melhores condições de vida para si e para outras mulheres, inserindo o homem neste circuito de afetividades, tornando a luta política feminista ampla, embora mais focalizada no fortalecimento das mulheres, por estarem mais vulneráveis dentro de um sistema com fortes resquícios patriarcal. Neste tipo de narrativa, os papeis dos gêneros são arrefecidos a ponto de quase não haver presença de conflito entre os sexos ou de qualquer outra categoria e, quando há, os gêneros são apresentados como um princípio organizador, fluido, relacional que pode ser desempenhado por qualquer pessoa.

Kuami, de Cidinha da Silva, é uma narrativa fabular que insere na dimensão literária questões fundamentais para os sujeitos diaspóricos, isto é, sujeitos pertencentes a grupos étnicos, forçados a saírem de seus lugares de origem para viverem em outros. Na narrativa em questão, sujeitos que saíram de diferentes lugares do continente africano em razão do tráfico negreiro, e dispersos nas colônias, formando um grupo que se eram diferentes entre si em razão da etnia, eram iguais em condição social. Assim, os afrodescendentes nascidos nos países colonizados tiveram que aprender com o tempo a se verem de duas formas: diferentes entre si, mas iguais em uma sociedade de estrutura estamental. Na modernidade, o conceito de nação e de pertencimento vai impor outra mudança aos sujeitos diaspóricos: o de se espelhar em um modelo de civilização baseada no modo de vida europeu. Esta europeização não teve apenas como modelo Portugal, mas França e Inglaterra que foram decisivos como disseminadores de uma visão de civilidade e de comportamento que seria imitado por mulheres e homens em vários países colonizados. 

Em Kuami, o tráfico de escravos, a tentativa de apagar a memória afetiva das pessoas e a alienação dos sujeitos são aspectos estruturantes de uma forma de dominação e aparece na narrativa para mostrar como as personagens responderão a esta estrutura. Como sair da condição de “escravo” para o de “liberto”? Questões como ancestralidade, matriarcado, valores iorubanos, são dimensionados para um discurso literário, político, ancestral, feminista, lúdico, e pedagógico que torna a fábula uma aventura literária prazerosa para os leitores e, sobretudo, uma viagem reflexiva. Deste modo, Kuami sintetiza uma proposta de reunir em um único livro uma discussão feminista enlaçada à ancestralidade.  

Ao receber Janaína das mãos de Naomi, a Mãe D’Água carregou-a num abraço forte e cheio de mimos. Olhou os olhos vivos da pequena sereia e sem desviar os seus, sentenciou: “essa menina vai voar por terras distantes”, “Mares, talvez”, contemporizou o pai Baiacu. “Não, meu filho, terras”  

Neste breve, mas significativo trecho, o matriarcado é figurativizado pelo gesto da mãe biológica de entregar a filha à mãe espiritual, sugerindo um rito iniciático de apresentação da criança à comunidade e que a partir daquele momento ela terá a proteção não apenas do núcleo familiar, mas de todos, daí porque os pais não são os únicos a cuidar dos filhos. Este rito assemelha-se no candomblé à entrada da abiã ao roncó, quando a mãe biológica entrega a sua filha à yalorixá e a partir deste momento ela recebe as devidas orientações dadas pela mãe de santo.  

Resumindo a narrativa, Kuami é um filhote de elefante cuja mãe foi capturada por caçadores e colocada em um navio quando ele ainda estava em seu ventre.  Certo dia, já em outras terras, a mãe conseguiu fazer com que o filho fugisse e a partir deste momento Kuami passa a viver sozinho na floresta. Janaína encontra Kuami sozinho pastando às margens do rio. É a partir deste encontro que a narrativa se desenvolve, porque Janaína se predispõe a procurar a mãe de Kuami. Janaína reúne a comunidade e inicia a sua jornada, antevista pela Mãe D’Água, de que ela viajaria por terras. A mãe de Kuami é encontrada e cada um segue o seu caminho.  

Kuami é a metáfora da história da diáspora africana no Brasil. A narrativa nos remete à escravidão, ao tráfico negreiro, e aos sentimentos vividos pelas mulheres africanas que grávidas ou com seus filhos muito pequenos foram forçadas a sair de grupo social. O gesto de partir em busca da mãe representa simbolicamente o caminho que os sujeitos diaspóricos fizeram e fazem para tentar se orientar neste mundo, transformando a saudade em encontro, em fortalecimento do espírito, em autoestima, em confiança em si, pois só quem viveu a experiência da solidão, da orfandade, sabe a importância de se ter a casa cheia.  

É imbuída desta confiança e sentimento de irmandade que, ao crescer, Janaína inicia um processo de autodescoberta, buscando vivenciar outras situações que a desafiem mais e possam fortalecer os valores recebidos da suas ancestrais. É neste momento que ela encontra Kuami.  Deste encontro nasce um sentimento importante dentro da filosofia iorubana – o sentido de irmandade – sentimento que pelo princípio da ancestralidade significa mais do que um apoio moral ou psicológico, mas uma consciência que transcende o imediato consolo, orientando os sujeitos envolvidos para uma dimensão existencial, uma vivência plena que os liberte.  Kuami é o símbolo do sujeito diaspórico, capturado antes de nascer, e separado de sua mãe, de sua origem, deixando-o triste e saudoso. Representa aqueles e aquelas a quem foram negados a existência e o direito à memória. É Janaína quem irá ativar a memória de Kuami, acolhendo-o afetivamente, outro fundamento da cosmovisão iorubana, apresentando-o à sua comunidade para que se fortaleça e possa lutar pela sua liberdade e a de sua mãe, composição metonímica para a liberdade dos sujeitos diaspóricos brasileiros e da África, continente matriz e nutriz.

Cidinha da Silva insere alguns aspectos fundamentais para entendermos o que eu chamo de feminismo ancestral: primeiro, destaca o papel fundamental da mulher no processo de geração de vidas e, portanto, essencial para a própria existência humana; segundo, para além da vida, apresenta a importância das mulheres para a iniciação das crianças dentro da dinâmica civilizatória; terceiro, insere a diáspora africana de uma perspectiva da mulher; quarto, destaca o protagonismo e liderança das mulheres em diferentes situações, sobretudo no enfrentamento às formas de dominação e de violência, produzindo uma relação de sororidade, de apoio mútuo; quinto, não infantiliza a criança, porque faz parte da educação iorubana atribuir funções, dar responsabilidades às crianças desde cedo, portanto a maternidade não é construída a partir da dependência da criança à mãe, mas por uma relação de corresponsabilidades e, por fim, sexto, denuncia o patriarcado colonialista que impõe uma relação de poder e de destruição do Outro, sobretudo mulheres e crianças, aludindo a este sistema de dominação um caráter feminicida e infanticida.

Kuami é uma fábula e como tal repleta de referências simbólicas que interseccionam tradição e modernidade, fundindo o passado ao presente. As simbologias, que remetem à cultura iorubana, preservada na Bahia pelos terreiros de candomblé, são constantes na narrativa, tais como as referências aos Orixás, aos ritos iniciáticos, à composição familiar clânica, para ficar em alguns exemplos. Outros símbolos nos remetem ao continente africano, como o elefante, cuja manada é sempre liderada por uma fêmea, a matriarca, representação resultante de uma escolha feminista por parte da escritora para significar o candomblé na Bahia, fundado por mulheres. E se hoje ele pode ser cultuado e respeitado, deu-se pela atuação combativa e pelos valores ancestrais preservados pelas mulheres. 

As referências à cultura iorubá, etnia que forma a nação ketu de alguns terreiros de candomblé na Bahia podem ser vistas também pela escolha dos nomes das personagens. Janaína é um nome atribuído a Yemanjá, Orixá das águas salgadas, que representa a maternidade, o acolhimento, a afetividade, e que na narrativa Kuami aparece no comportamento de Janaína e da Mãe D’Água, sobremaneira. A maternidade é um aspecto importante para os afrodescendentes, por isso aparece com frequência nas composições literárias dos escritores da diáspora africana, porque sem a mãe não há ancestralidade e sem esta concepção de mundo, isto é, sem a compreensão de um caminho realizado pela memória, meio pelo qual se faz a intervenção no presente, é impossível um projeto civilizatório que nos reúna e nos faça viver dignamente. Passado e presente estão fundidos e sem memória não há consciência do presente.  É importante salientar que a maternidade vai além da concepção biológica, ela pode ser vivenciada por qualquer mulher que mantenha uma relação iniciática com a criança, ou seja, uma relação pautada em rituais, que se dá por gestos e por palavras, fazendo com que esta criança se sinta pertencida a um espaço, a um grupo como pessoa. Esta dimensão feminista, baseada na consciência das mulheres da sua importância para o empoderamento de outras mulheres, a partir de uma concepção baseada na afetividade, na irmandade, no acolhimento, no fortalecimento da autoestima e no senso de responsabilidade mútua, faz da narrativa Kuami uma referência para os estudos feministas na literatura infanto-juvenil. 

A literatura de Cidinha da Silva traz esse ensinamento, daí a sua importância também pedagógica, ao enfatizar a necessidade da presença do adulto na formação da criança, sem infantilizá-la, mas dando à dimensão afetiva e iniciática uma relevância para que a criança se perceba no mundo como pessoa. Segundo Ronilda RIBEIRO (1996, p. 44): “A pessoa é tida como resultante da articulação de elementos estritamente individuais herdados e simbólicos. Os elementos herdados a situam na linhagem familiar e clânica enquanto os simbólicos a posicionam no ambiente cósmico, mítico e social”. Desta forma, as personagens da narrativa Kuami representam a ficcionalização da cosmovisão iorubana de pessoa, problematizando para o leitor o seu lugar na sociedade.  

Para os sujeitos da diáspora africana, esta consciência é formada no encontro do sujeito com o mundo, do entendimento dos seus signos e como este sujeito aparece dentro deste conjunto de signos codificados pelo discurso hegemônico e de que forma ele irá rasurar este código para que a sua voz seja ouvida e influente: 

No dia seguinte, Janaína começa a viagem de saída do rio. Ao chegar à cabeça das águas, ela ouve um barulho forte de sucção. Abre bem os olhos e vê uma mangueira. Sustentando-a duas abas imensas e entre elas dois olhos refundíssemos. “Conheço este bicho!” Ela grita depois de juntar as patas à mangueira, às abas, e aos olhos e formar uma imagem. Nunca havia visto um deles por aquelas bandas, aliás, nunca soubera de sua existência por ali. (DA SILVA) 

Este fragmento é elucidativo para compreendermos como o conhecimento é processado pelas pessoas. Da mesma forma que Janaína identifica o elefante por meio da combinação de suas partes, o mundo no qual vivemos poderia ser comparado a um imenso “elefante” fragmentado e desconhecido. Para que sejamos sujeitos deste mundo precisamos observá-lo, ligar as partes desta história para, enfim, significá-la pelo nosso olhar e não pelo filtro do Outro. O trecho citado sugere que o conhecimento é feito por meio de uma viagem, portanto de um deslocamento físico ou epistemológico, de um encontro com o diferente, o estranho, de um ajuste imagético a referências conhecidas, da existência do Outro como ser, mesmo com as suas “maluquices”.  

Janaína é uma personagem feminista e é deste lugar que a narrativa se desenvolve e, por conseguinte, o conhecimento de mundo é gerado. Esta escolha no plano da ficção resulta de uma posição de gênero da escritora, tanto por trazer a menina para um protagonismo que constrói o enredo ficcional, quanto por transformar esse protagonismo em um movimento de consciência que alcança a leitora (ou o leitor), janaínas em potencial.  

É desta forma que a cosmovisão iorubana pode ser tratada como projeto civilizatório em Kuami, pautado em um protagonismo de mulheres, com uma proposta política emancipatória, por isso feminista, ancestralizada e pedagógica. A fábula desperta em cada leitor uma reflexão sobre a sua condição na sociedade, torna cada leitora e leitor janaínas e kuamis prontos para acolher, se comprometer e (se) libertar. 

Referências: 

DA SILVA, Cidinha. Kuami. Belo Horizonte: Nandyala, 2010.

RIBEIRO, Ronilda Yakemi. Alma Africana no Brasil. Os Iorubás. São Paulo: Oduduwa, 1996.
 
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O trabalho KUAMI OU A EDUCAÇÃO FEMINISTA PELA ANCESTRALIDADE de LÚCIA TAVARES LEIRO está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
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