sábado, 4 de dezembro de 2010

CHAMADA PARA ARTIGOS

Recebi esta mensagem por e-mail a qual transcrevo para fins de divulgação:
Estamos preparando o número 19 de Labrys, Estudos Feministas e convidamos a todas para apresentar artigos ao Comitê de Leitura nos temas: “Mulheres de Aventura”( viagens, descobertas, explorações, biografias, aventuras em terra, ar e mar, no presente e no passado, etc) e “Lesbianismo” ( teorias, práticas culturais, biografias, literatura, etc)


Quero agradecer-lhes a colaboração que possibilitou a publicação de Labrys até o presente número. Gostaria também de convidá-las a uma maior participação, organizando dossiês, dando idéias, trazendo-nos temáticas que considerem interessantes/pertinentes.. O dossiê leituras continua a receber literatura em todas suas formas, além de zines, caricaturas, etc.


Conto com vocês para que os próximos números sejam cada vez melhores e espero suas idéias e colaborações e estou à sua disposição para quaisquer esclarecimentos no e mail anahita@terra.com.br.

domingo, 28 de novembro de 2010

SONIA COUTINHO ATRAVÉS DOS SITES

Existem inúmeras desconfianças quanto ao uso das informações contidas na internet, contudo prefiro me dedicar aos usufrutos que as navegações ou velejamentos me propiciam, que incluem os riscos acometidos a qualquer viajante. O número infinito de dados que os sites de busca nos oferece nos impele a fazer seleções das informações que chegam aos nossos olhos, tornando a atividade por vezes demorada e cansativa, ao mesmo tempo em que motivadora e prazerosa.

Quando necessitei de material para compor um estudo sobre a produção de Sonia Coutinho e Helena Parente Cunha encontrei uma série de informações que, certamente, se não fosse a internet, não teria acesso, pelo menos, em tempo tão curto e de forma tão confortável. Pude acompanhar, por exemplo, dentre as atividades desempenhadas pelas duas escritoras, os livros publicados, as versões em outras línguas, os assunto nas palestras feitas em outros países e no Brasil, o estudo de suas produções em inúmeras universidades brasileiras e estrangeiras, as entrevistas, e muitos outros dados.

A internet é uma ferramenta imprescindível para a pesquisa e, consequentemente, para a ampliação do conhecimento, porque ela permite o acesso a um número vasto de informações que certamente de outra forma seriam difíceis de encontrar. Por exemplo, no site http://www2.metodista.br/unesco/jbcc/jbcc64.htm verifiquei uma referência sobre a escritora, citada em livro, quando se discutia a importância do movimento intelectual dos anos 50-60 na UFBA para a formação de intelectuais como Sonia Coutinho. Esse aspecto é importante para entender as condições de produção da escritora que não apenas inova a narrativa ficcional do ponto de vista da estrutura, mas apresentando temas igualmente inovadores ao discutir o patriarcado na Bahia e os seus efeitos da educação das mulheres de classe média alta. A instrução das mulheres sempre foi mencionada pelas feministas como sendo de extrema importância para a emancipação das mulheres e a produção de Sonia Coutinho mostra que essa instrução nos anos 60 inevitavelmente perpassaria pelos problemas das mulheres em uma estrutura social por meio da qual eram subordinadas ao poder masculino. As produções da escritora tiveram repercussão em Universidades dentro e fora do país.

Nas universidades localizadas fora do país, a produção de Sonia Coutinho tem sido estudada nas disciplinas que discutem a literatura latino-americana e, também, através de seminários. A crítica Andrew Bell da Universidade do Texas, Austin, apresentou um trabalho sobre a narrativa da escritora com o título "Sônia Coutinho: Narrating Woman" para um evento da American Portuguese Studies Association, no II Congresso Internacional, realizado na Univesidade de Wisconsin, Madison entre os dias 19 e 21 de outubro de 2000. Um outro evento, o Congresso Internacional sobre Escritoras Lusófonas, realizado nos dias 19 a 21 de maio de 1999, contou com os estudos da pesquisadora Susan C. Quinlan, da Universidade de Georgia, que apresentou o artigo "Re-Inventing Brazil: Women's Identity in the Works of Sónia Coutinho". Já o Instituto Brasileiro e Português da Universidade de Köhn produziu um estudo sobre o romance Os Seios de Pandora intitulado "Der weibliche Detektiv und das Verbrechen in Sonia Coutinhos "Os Seios da Pandora", Köln, em 22 de janeiro de 1999, discutindo as nuanças que diferenciavam o romance de detetives produzido por homens e mulheres. O interesse pelas produções de Sônica Coutinho partem de espaços e culturas diferentes, mas predominantemente anglo-saxão, inclusive a Alemanha.

Os cursos oferecidos pela Universidade de Havard em Língua Portuguesa sugeriram as produções de Sonia Coutinho para tratar da produção literária brasileira no período da ditadura militar enquanto textos dissonantes ao pensamento e escrita hegemônica. Um desses cursos, Portuguese Language Courses, foi ministrado pelo professor Nelson H. Vieira, e oferecido na Primavera de 2001 sob o título "The Cultural Politics of Brazilian Identity(ies): Post-64 Literature and Interrogations of Power, Ethics and Alterity"

Os jornais proporcionaram e veicularam igualmente estudos sobre os textos da escritora. O Jornal Hispania, Volume 82/4 de dezembro de 1999, na página 713, produzido pela Universidade do Texas, trouxe um artigo de Cristina Ferreira-Pinto Bailey intitulado "Sonia Coutinho: desconstruindo mitos de feminilidade, beleza e juventude" na seção "Articles on Language and Literature". O Jornal Literário Ploughshares, da Faculdade Emerson, lançou no inverno de 1985, no volume 11/4, uma edição com poesia e ficção na qual está presente o conto "Fatima & Jamila", página 233, do livro Uma Certa Felicidade. Já a revista Ficções, ano II - Número 4, 2º semestre/1999, com 108 págs. publica o conto "Marginal Light" de Sonia Coutinho do livro mais recente Os mil olhos de uma rosa.

A literatura baiana de autoria feminina passa a ser referência nos estudos da literatura brasileira dos centros universitários de vários países o que significa inserção cultural, apesar de ainda tímida, de um discurso não visível pela crítica literária. A literatura de Sonia Coutinho é estudada do ponto de vista feminista articulando a sua narrativa à discussão sobre as identidades sem perder de vista o contexto histórico.

A produção da escritora baiana também faz parte dos cursos de pós-graduação de algumas universidades, a exemplo do Department of Portuguese and Brazilian Studies que destacou a produção de Sonia Coutinho ao abordar noções sobre alta literatura, cultura aceitável e bom gosto na ficção contemporânea brasileira dos anos 60.

A pesquisa nos sites de busca mostra que a escritora Sonia Coutinho tem produzido também artigos de crítica para jornais do Rio, a exemplo de "O diário íntimo que Graciliano Ramos (não) escreveu", publicado no jornal O Globo, Rio de Janeiro, de 12 de setembro de 1981. Cad. B, p.9.,e o mesmo título de artigo em outra edição, 14 de novembro de 1981, página.5 e, também, "Duplicidade, multiplicação. Jogo de ‘Stella Manhattan’", no Jornal O Globo, Rio de Janeiro, edição de 17 setembro de 1985.

Sonia Coutinho escreveu ainda um artigo intitulado "Pioneira da ficção feminina" para o Jornal O Globo em 23 de maio de 1993 por ocasião do lançamento das obras reunidas de Teresa Margarida da Silva Orta. A escritora baiana, neste breve artigo, destaca o pionerismo de Orta em relação a outros escritores posteriores que obtiveram a visibilidade que a escritora não teve, além de apresentar parte de sua biografia permeada de desafios.

No Jornal do Commercio, em 1998, Caderno C, seção Família, a escritora deu um depoimento acerca do tema solidão: " Moro sozinha há quase 20 anos e não me imagino vivendo de outra maneira. É um estilo de vida. Não tenho mais que dividir espaço. Em alguns momentos posso me sentir sozinha, mas solidão a dois é mais traumática. Em meu novo livro, Os seios de Pandora (Editora Rocco), as duas personagens centrais são sozinhas e vivem bem. Acho que a partir dos anos 70 surgiu a mulher que se sustenta, que compete com o homem no mercado de trabalho, e no Rio de Janeiro há espaço para essa mulher. Uso a solidão para trabalhar, produzir mais." A solidão é tema que está presente nas narrativas mais recentes, mas, também nas suas primeiras produções.

A escritora também esteve representando o Brasil na Alemanha no III INTELI - Encontro Internacional de Escritores, juntamente com João Ubaldo Ribeiro e Rubem Fonseca, divulgando os seus trabalhos e ao mesmo tempo a literatura contemporânea brasileira em outros países.

As traduções é uma das atividades realizadas por Sonia Coutinho. Em 2007, a escritora traduziu Stella Adler sobre Ibsen, Strindberg e Checkov, organização de Barris Paris para a editora Bertrand Brasil. O livro tem 378 páginas e conta com a "transcrição de algumas lições de teatro que ela [Stella Adler] ministrou entre os anos 70 e 80." Outras traduções fazem parte do currículo da escritora: A dimensão oculta (The Hidden Dimension), publicado originalmente em 1966 por Edward T. Hall, e traduzido pela editora Francisco Alves em 1977; Os assassinato da Rua Morgue, de Edgard Alan Poe, publicado pela editora Sette Letras, no qual, segundo a sinopse publicada pelo site Submarino, foi quem introduziu a pergunta "quem matou?" nos romances do gênero policial que, muito provavelmente, ganhou um sentido feminista quando usada pela escritora para identificar as causas das mortes física ou simbólica das mulheres, a exemplo do romance Atire em Sofia, da escritora; O carne dourado (The Golden Notebook) de Doris Lessing, traduzifo juntamente com Ebreia de Castro Alves;  Ponto de Fuga [then ways of escape] de Graham Greene;  Mutações [Forandrigen] de Liv Ullmann; Machado de Assis: ficção e história, de John Gledson, 1986;  Passagem para a Índia, de de E. M. Forster, editado pela Nora Fronteira; Sun Tzu: A arte da guerra: uma nova interpretação, publicado pela editora Campus em 2001;  O misterioso Sr. Quin, romance policial de Agatha Christie, publicado pela L± O grande massacre dos gatos e outros episódios da história cultural francesa, de Robert Danton, publicado em 1986, pela Graal; Vagarosamente, ao vento, de Patricia Highsmith, publicado pela editora José Olympio; Marie Curie, uma vida, de Susan Quinn, publicado pela Scipione em 1997; Visser, Margaret - O ritual do jantar : as origens, evolução, excentricidades e significado das boas maneiras à mesa (Título original: The rituals of dinner), editora Campus, 1998; Sem Deixar Vestígios, de Charles Berlitz, 1990, traduzido do original em inglês Without a trace/1977.

 
Um fato que talvez pouco se saiba é que o conto Nascimento de uma mulher de Sonia Coutinho foi, durante a ditadura militar, desaconselhado pelo censor Walmir Ayala, membro da comissão de leitura e um dos responsáveis pela leitura de textos enviados para o Instituto Nacional do Livro, autarquia criada na época de Getúlio Vargas, a fim de serem reeditados através de um convênio entre as editoras e o INL. Vários intelectuais como João Ubaldo Ribeiro, Jorge Amado, Luiz Costa Lima, James Amado, Leandro Konder, Esdras do Nascimento, Margarida Ottoni, Armindo Trevisan, Moacyr Scliar, Paulo Coelho, Clarice Lispector, Sérgio Sant´Anna e outros tiveram suas produções julgadas e vetadas. A narrativa da escritora baiana foi considerada "incomodativa" no plano sintático e temático, embora este último aspecto tenha sido suavizado pelo primeiro para dar a impressão de uma não intencionalidade ideológica formal, desvinculando o que para muitos críticos hoje é indissociável: a forma e o conteúdo do texto.

Vejamos o parecer sobre o conto de Sonia Coutinho, acrescido de uma nota :


OBRA: Nascimento de uma mulher
AUTOR: Sônia Coutinho
CENSOR: Walmir Ayala
DATA: ?/?/1970
PARECER n.º 57
Apesar de certas formas indiretas de frases, sem necessidade, como “para a melhor mamãe do mundo ela ser”, e de uma proliferação incomodativa de “ah!” no decorrer da narrativa, trata-se de uma prosadora de qualidade. Não sei se a existência de um personagem comunista na primeira novela (eu chamo de novela apesar da autora chamar de conto) pode incomodar alguma gente. Eu encaminharia este livro para a nossa coleção de novíssimos com o pedido à autora de uma revisão, uma releitura mais atenta para aperfeiçoar a linguagem. Não acho de nível para a co-edição, mas é certo que se trata de uma possível estreante de muito vigor e que merece a chance de um bom lançamento. Atenção: o tema do personagem comunista se repete em outras histórias, especialmente naquela te (sic) tem por título: Pai e Filho. Em suma: peço releitura por parte de outro membro da Comissão. (grifos em negrito meus)

NOTA: O termo “rejeitada”, acrescentado ao cabeçalho do parecer, sem indicação de que tenha havido pedido de vista por parte de outro membro da Comissão, faz supor que bastou para o veto do livro a existência, denunciada por Walmir Ayala, de uma renitente personagem comunista na obra da então iniciante Sônia Coutinho, que ao tomar conhecimento da censura, anos depois, ponderou: “Conheci Walmyr Ayala e creio que os pareceristas estavam numa posição difícil, pois sofriam pressões fortíssimas” (depoimento ao Jornal do Brasil, 15/01/95). Embora a quase totalidade dos censores não tivesse vínculo empregatício com o INL, estando desobrigada a participar das Comissões de Leitura, havia vantagens indiretas para a colaboração: em breve, o INL começaria a editar, sem necessidade sequer de co-edição, os quatro volumes ilustrados do custoso Dicionário brasileiro de artistas plásticos, de Walmir Ayala (o primeiro tomo, em parceria com Carlos Cavalcanti), além de aprovar co-edições da produção poética do mesmo colaborador.

Acredito que o trabalho de pesquisa e resgate sobre uma escritora, principalmente baiana, recupera parte de um legado histórico e cultural que muitas vezes fica nas dobras de outros interesses nem sempre de promoção intelectual. A literatura baiana contemporânea, creio eu, pode alargar muito mais o seu conjunto de produção, quase sempre restritos a uma linhagem masculina: Gregório de Mattos, Castro Alves, Jorge Amado, João Ubaldo Ribeiro - devido a uma crítica pautada ainda em valores androcêntricos - contemplando as produções de escritoras como Amélia Rodrigues, Ana Ribeiro de Góes Bittencourt, Sonia Coutinho, Helena Parente Cunha, Myriam Fraga, dentre outras, que discutem em seus textos questões de extrema importância nos estudos feministas e culturais porque são atravessadas por conflitos de classe, gênero, geração e etnia em uma estrutura social de base patriarcal e burguesa.

Texto escrito em 2007


sexta-feira, 26 de novembro de 2010

REVISTA MISCELÂNEA: LANÇAMENTO E CHAMADA DE ARTIGO

A Revista Miscelânea do Curso de Pós-Graduação da Unesp de Assis lançou recentemente o volume 08. Segundo o editor da Revista prof. Jaison Crestani:

O volume atual apresenta o dossiê "Literatura e Imprensa", no qual se explora os entrecruzamentos entre a produção intelectual e seus mecanismos de divulgação, oferencendo uma contribuição significativa para a compreensão da dinâmica que orienta a confluência entre bens simbólicos e fatores de mercado. A revista conta também com artigos de temática livre, uma entrevista que inaugura uma nova seção da Miscelânea, criações ficcionais que abrangem a prosa e a lírica e, finalmente, uma gravura artística que ilustra a temática contemplada pelo volume.

Além do lançamento, a Revista, que foi classificada pela Capes e recebeu o Qualis B3 na última avaliação, também está divulgando o seu próximo volume cuja proposta é compor um dossiê sobre literatura contemporânea. Ainda conforme o editor da Revista:

Aceitam-se, preferencialmente, artigos e resenhas que contribuam para a compreensão das diferentes manifestações da literatura na contemporaneidade, com abertura para o diálogo entre diferentes linguagens, gêneros, formas de expressão artística e cultural. A proposta almeja contemplar a diversidade dos processos de representação literária da atualidade e as relações entre forma literária e matéria social. Aceitam-se também artigos de temática livre, traduções, entrevistas e produções ficcionais.
O prazo para envio dos trabalhos é até o dia 28 de fevereiro de 2011. Maiores informações: www.assis.unesp.br/miscelanea.

sábado, 20 de novembro de 2010

ROSTO COM DOIS PERFIS

E me corto ao meio e me solto
de mim, duplo coração:
a que vive, a que narra,
a que se debate e a que voa
- na loucura que redime
da lucidez. (Lya Luft)


A publicação da escritora gaúcha Lya Luft, intitulada Histórias do Tempo, ed. Mandarim, 2000, presenteia o leitor com histórias permeadas de clarividência, poesia e memória, divididas estruturalmente em onze partes cada uma introduzida por um poema. A voz que narra, vai se revelando paulatinamente como escritora, poeta, ensaísta, discutindo questões como o processo da escrita, a relação entre escrita e experiência social e o pacto com o leitor - aquele com quem a escritora estabelece uma “aventura a dois”.


A narradora evidencia alguns componentes que se entrecruzarão ao longo da narrativa - memória, história, estrutura e relações sociais significadas através da ótica da mulher - apontando para o processo da escrita enquanto registro de um legado sócio-cultural gendrado. Estes aspectos tecidos na narrativa revelam o lugar de onde o escritor/narrador fala (seja ficcional ou social), expondo a sua visão de mundo, suas reflexões, balanços e questionamentos, colocando-se em constante diálogo com o leitor, exigindo dele, muitas vezes, uma postura auto-reflexiva diante de questões sociais, existenciais e relacionais. Histórias do Tempo fala de máscaras, infância, resistências, relacionamentos de mulheres consigo mesmas e com o(s) outro(s), geração de 60, família, vida, morte, amor e violência urbana, dosando linguagem poética e ensaística, através de um aguçado olhar feminino (eu diria feminista) crítico, representado pela voz narrativa, que, na maturidade, faz um retrospecto de sua vida, das relações sociais burguesas, percebendo, através de uma atitude de auto-descoberta, a dupla máscara que envolve a mulher. No romance, a narradora se alterna em duas vozes, ora Medésima “a mulher cotidiana”, a que se movimenta no código e ora Altéria, a mulher oculta “o desencontro o desdito o transverso o avesso...”


A leveza com que a voz narrativa percebe a presença de “duas mulheres” em si mesma, que se movimentam distintamente na sociedade, rompe com a estrutura do pensamento masculino Ocidental pautado na oposição e repulsa das diferenças. A narradora mostra que as negociações são possíveis e necessárias para que as diferenças possam se encontrar sem mutilações. Medésima e Altéria transitam em espaços diferentes, mas exercitam entre si rituais de delicadeza para chegarem ao equilíbrio. No texto, a problemática dos relacionamentos resulta do embrutecimento dos hábitos cotidianos, da falta de gentilezas que corroem os elos das relações e que acabam transformando as pessoas em indivíduos amargos e solitários.

Porque temos de estar sempre alertas, preparados, prontos para a invasão: a hora em que – às vezes sem me dar conta – eu quero impor a quem amo as minhas verdades ou o que penso que sejam, e declará-las território meu (...) A partir desse momento, sendo ‘a propriedade’ um do outro, o encantamento – com o respeito – começa a morrer.


O romance de Lya Luft nos convida a uma viagem pelos recantos da memória, estimulando-nos a reflexão e, mais precisamente, conduzindo-nos a pensar na Medésima e Altéria que habitam em nós. As perguntas que aparecem no texto levam o/a leitor/a a refletir as suas práticas cotidianas e os códigos que regem a sociedade com seus papéis definidos e fixos para homens e mulheres. A narradora enfoca o lugar da família como espaço institucionalizado, onde as relações de gênero são construídas e experenciadas, mas também onde se exercita sutis e obstinadas resistências. A tensão entre as limitações internalizadas e o desejo de extrapolar as cercas que delimitam e controlam as nossas atitudes é que faz Histórias do Tempo um romance inquisitivo e instigante ancorado numa tessitura fluida e poética.

domingo, 14 de novembro de 2010

MULHER NO ESPELHO, ATIRE EM SOFIA E REUNIÃO DE FAMÍLIA

Sônia Coutinho, Helena Parente Cunha e Lya Luft são escritoras de uma mesma geração, a de 60. As duas primeiras são da Bahia - sendo que Coutinho é da cidade de Itabuna e Cunha é de Salvador - e a última, Lya Luft, é de Santa Cruz, cidade do interior do Rio Grande do Sul. São mulheres oriundas da classe média alta e que foram educadas, como tantas outras, para constituir família, exercendo os papéis de esposas e mães. Elas começam a publicar seus romances nos anos 80, quando já se encontravam na maturidade e, também, quando o Brasil passava por uma transformação política, de abertura, após 20 anos de ditadura militar.

Atire em Sofia , 1989, Mulher no Espelho , 1985 e Reunião de Família, 1982, trazem reflexões de personagens que falam de suas experiências como mães e esposas, mas, principalmente, do choque entre os papéis sociais para o qual elas foram destinadas desde jovens e as aspirações enquanto mulher. O eixo de discussão dos romances recai em um mesmo objeto: o espelho – aliás metáfora presente nas três narrativas – que remete à busca das personagens por sua identidade, mulheres empenhadas em realizar uma aventura a partir de um percurso memorialístico para decobrir  o que as impediu de viver experiências e emoções que não fossem as autorizadas pela sociedade ou mesmo o que as mantêm atreladas a um passado.

O fato de reunir simbolicamente idéias de desdobramentos e conhecimento de si, torna o espelho uma metáfora freqüente na produção de autoria feminina e basilar para a crítica feminista, já que o seu sentido está relacionado diretamente à discussão sobre a identidade feminina, mostrando - através da reflexão das personagens, não para encontrar um igual, mas, ao contrário, para defrontar-se com o outro – como o constructo androcêntrico da sociedade ocidental é violento e inadequado à realização da mulher: “o espelho não tem como função refletir uma imagem; tornando-se a alma um espelho perfeito, ela participa da imagem e, através dessa participação, passa por uma transformação. Existe, portanto, uma configuração entre o sujeito contemplado e o espelho que contempla.” (Lúcia Leiro)

Em Atire em Sofia, 1989, a passagem do espelho mostra a personagem empreendendo uma viagem memorialística em direção a si mesma. Atravessar o espelho, como Alice, conduz a personagem a uma aventura de auto-conhecimento, no intuito de encontrar respostas para a sua exclusão/invisibilidade. À medida em que a personagem vai encontrando sentido para a sua existência, a imagem vai sendo recuperada até obter a visão de um “rosto pálido e envelhecido, um rosto afivelado em cima de muitos outros, como a penúltima máscara, um rosto qualquer, enfim, mas é o seu”.

No romance Mulher no Espelho, 1985, a imagem especular aparece também como discussão em torno da identidade da mulher. Olhar o espelho consiste em executar uma viagem introspectiva na tentativa de encontrar, nesta mirada, um sentido para sua própria vida. A personagem do livro de Helena Parente Cunha recorre à memória em busca de sua identidade, através de sua própria escuta, tornando o processo de auto-descoberta uma experiência fascinante e, ao mesmo tempo, extremamente violenta: “tenho o que dizer, pois vou dizer-me a mim mesma, como qualquer pessoa que se põe diante da memória ou dos espelhos”. O espelho inteiro remete à uma pretensa unidade do sujeito instabilizada e questionada ao longo do romance através dos embates da personagem. A imagem estilhaçada refletida nos pedaços do espelho e presente no final da narrativa, aponta para a existência de várias vozes, que se desdobram e se multiplicam: mulheres que habitam mulheres.

Assim como as duas narrativas anteriores, o romance Reunião de Família, 1982, de Lya Luft, apresenta o espelho que reflete o outro lado que não se mostra, ao mesmo tempo que estabelece um elo de reflexão com a personagem, descrita como uma mulher casada, mãe, dona-de-casa e que tem a sua sexualidade satisfatoriamente vivenciada com o amante, mas ‘deve’ ser ocultado da sociedade. Ao olhar o espelho, a personagem dialoga consigo mesma, percebendo na fissura da imagem, o seu duplo: “falo e já me arrependo. Espio rapidamente meu reflexo no espelho, aquela que não é a pacata dona-de-casa, é uma mulher má, cara cortada ao meio pela rachadura do vidro.”

O espelho, como objeto metafórico, permeia toda a narrativa de Luft, assim como acontece com os textos de Sônia Coutinho e Helena Parente Cunha, para discutir o percurso das personagens na busca de entenderem a si mesmas com seus rostos partidos, estilhaçados e afivelados. Mulheres que traçaram seus próprios caminhos na tentativa de encontrar alternativas e saídas para viverem uma vida mais humana e mais plena em uma sociedade patriarcal que só as reconhecia nos papéis de mães e esposas.

Nos três romances, a busca de identidade engendrada pelas personagens encontra resistência devido aos papéis que elas exercem na sociedade, fazendo com que, algumas vezes, elas rompam com o código e sofram a angústia da culpa ou encontrem, sem violar o código, formas de não permitir que o rosto encoberto sucumba às máscaras do cotidiano.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

"Desejos de enxames de abelhas nos laranjais floridos"

"Você está cansada de ver seu marido entrando e saindo com a pasta preta pregada na mão e os dois relógios agarrados no pulso e a voz hibernada. Em casa ele usa os chinelos nos pés sempre calçados de meias para não se resfriar. Você não quer mais passar a roupa da casa e contrata uma passadeira. Seu marido diz que é preciso economizar para comprar o apartamento de dois quartos à vista. Ele não gosta de se preocupar com prestações. Escassez definhável encurtar encurraladavelmente. Você se cansa de tomar conta da casa. Casada. Cansada. Cansaço cósmico. Destranscendência. Você quer entrar para a escola de belas artes. O marido arquiteto de sua amiga loura diz é bom as duas fazerem o vestibular juntas. Seu marido recua o rosto acuado e se tranca no quarto. Anéis cercos nós. Imersão. Desejos de enxames de abelhas nos laranjais floridos. Você ouve seu marido perguntar as horas e depois a dele voz dizendo em demoradas sílabas que quer fazer amor. Você está deitada na cama e abre as pernas sem nenhuma estrela acesa. Seu corpo está cansado do corpo de seu marido em comedidas ordenações. A luz do abajur apagada entre suas pernas apagadas. Cansada. Casada. Você está cansada do lado de cá. Mas onde a coragem? O lado de lá." (
(Helena Parente Cunha, do romance As Doze Cores do Vermelho, p. 47)

Quem nunca sentiu "desejo de enxames de abelha em laranjais floridos?"

domingo, 31 de outubro de 2010

O Insistente Desafio de Hilda Hilst: Três leituras de Vera Queiroz

Vera Queiroz tem desenvolvido pesquisas na área de Literatura Brasileira, articulando estudos de gênero e cânone, que resultou em uma tese de doutorado, defendida pela PUC do Rio de Janeiro e publicada pela EDUFF (Editora da Universidade Federal Fluminense), em 1997, sob o título Crítica Literária e Estratégias de Gênero.

Em Hilda Hilst: três leituras, livro lançado em 2000, pela Editora Mulheres, Queiroz analisa algumas produções da ficcionista [Hilda Hilst] a partir de três ensaios: 1) O guardião do mundo, no qual a ensaísta analisa os textos eróticos da escritora; 2) Rútilo nada: as margens, em que Queiroz trata da questão do homoerotismo dentro dos estudos feministas e culturais; 3) Hilda Hilst e o cânone, no qual a estudiosa analisa, de forma comparativa, as produções Um copo de cólera de Raduan Nassar e Rútilo nada de Hilda Hilst.

No ensaio O guardião do mundo, Queiroz nos apresenta três aspectos básicos presentes nos textos de Hilda Hilst. O primeiro aspecto enfoca a transgressão temática, visto que “a pudicícia no tratamento do tema amoroso, da sexualidade ou do erotismo está longe de habitar seus textos”; o segundo mostra a subversão formal no texto da ficcionista, na medida em que a escritora não obedece a algumas regras, seja no plano estrutural seja no plano discursivo e o terceiro aspecto trata da mistura de gêneros literários que, segundo a crítica, é uma das técnica utilizada por Hilst.

O segundo ensaio de Queiroz aborda a temática homoerótica na novela Rútilo nada, salientando que o desinteresse da crítica pela produção de Hilst advém da falta de compromisso político, já que o “olhar crítico sobre a literatura e a arte em geral está indelevelmente marcado pelo compromisso ético, estético e existencial face à perspectiva de gênero”. Nesse sentido, a ensaísta evidencia a importância dos estudos contemporâneos [estudos culturais e de gênero] na análise dos textos de Hilst e suscita indagações sobre como a alta literatura vai lidar com as temáticas transgressoras da ficcionista, sem invisibilizar a vibração formal que permeia o seu texto. Essa discussão continua no terceiro ensaio no qual Queiroz atribui a exclusão de Hilda Hilst do cânone literário brasileiro à questões históricas e de gênero. A ensaísta coloca Hislt na linhagem de Lispector e aproxima a escritora paulista de seu contemporâneo Raduan Nassar. Este, além de apresentar, também, uma linguagem corrosiva e violenta e tematizar o erotismo, discute problemas relacionados à política.

Segundo Vera Queiroz, apesar da escritora formalmente equiparar-se ao escritor através da linguagem e, também, de uma certa forma, tematicamente, ela não recebe o mesmo tratamento, o que leva a ensaísta a expor o privilégio de gênero e da história na eleição dos textos a serem lidos e estudados.

Lúcia Leiro é professora de Literatura Brasileira da UNEB e tem desenvolvido estudos sobre a produção de autoria feminina contemporânea, sobretudo das escritoras baianas – Sonia Coutinho e Helena Parente Cunha.


Vera Queiroz Professora de Literatura Brasileira nos cursos de Graduação e Pós-Graduação da Universidade Federal Fluminense, pesquisadora do CNPq, tem trabalhado na pesquisa "Ficção feminina contemporânea e cânone", de que o livro "Hilda Hilst: três leituras" faz parte. Trabalha com as linhas "Crítica feminista"; "Feminino e literatura", "Ficção contemporânea".

Referência:

QUEIROZ, Vera. Hilda Hilst: três leituras. Florianópolis: Mulheres, 2000. 74 p.

O CARNAVAL E AS SUBVERSÕES DE MULHERES EM AMÉLIA RODRIGUES E SONIA COUTINHO

Alguns aspectos aproximam Amélia Rodrigues e Sonia Coutinho: ambas são escritoras e baianas. Embora não fossem contemporâneas uma da outra (Amélia Rodrigues viveu no início século XX e Sonia Coutinho atualmente vive no Rio de Janeiro), as duas abordaram, em seus textos, situações envolvendo as mulheres e os códigos sociais num ambiente carnavalesco, sendo que o conto O "defeitinho" de Carmita, de Amélia Rodrigues, publicado em 1929, enfatiza a subversão da personagem Carmita por participar do carnaval e o romance Atire em Sofia, de Sonia Coutinho, publicado em 1989, mostra situações de conflito político e identitário da personagem Milena, representado-a como símbolo da resistência étnico-feminista com o objetivo de encontrar respostas para as angustias de uma jovem em busca de um espaço de pertencimento de mulher negra, baiana e de classe média alta em Salvador.

1.

Amélia Rodrigues utiliza a metáfora da máscara do carnaval e da fantasia para mostrar o duplo comportamento da personagem Carmita que tenta driblar a proibição da sociedade, representada pelo seu noivo, de participar do carnaval. O noivo de Carmita, Dr. Aguiar, jovem médico da aristocracia agrária, chega à cidade para visitar a noiva às 22 horas e não a encontra em casa. Nesse ínterim, o rapaz encontra um amigo que resolve fazer-lhe companhia e os dois passam a conversar sobre casamento, a mudança do comportamento das mulheres devido a modernização da cidade - cinema, moda, flir - e, sobretudo, sobre Carmita, tudo isso intercalado por eventuais cenas do carnaval. Durante a conversa, enquanto o noivo tecia elogios ao comportamento recatado da noiva, o amigo procurava abalar suas convicções, aludindo a uma possível postura desviante da jovem. A narrativa finaliza com a passagem de Carmita vestida de Ninfa diante do noivo que, decepcionado, termina o noivado. O médico casa-se com uma jovem vizinha da fazenda com quem constitui família.

A atitude de enfrentamento da jovem, ao participar do carnaval, parece exorcizar o "medo moral" engendrado pelas proibições autoritárias, pelos interditos e pelas punições que acorrentavam o livre prazer da personagem exercer a vontade própria, indo de encontro com o discurso oficial que restringe a atuação da mulher ao espaço familiar, privado, separando-a do espaço público, da sociabilidade, da individualidade. A subversão da foliona corresponde a ultrapassagem do temor e, portanto, dos limites impostos pela norma burguesa que se utiliza de métodos coercitivos para impor disciplina e subjugar as mulheres aos interesses ideológicos de classe, sufocando as expressões "desviantes" provenientes de uma identificação com outro código incompatível com os propósitos da moral burguesa e judaico-cristã. Sendo a lei imposta pelo medo, cabe ao carnaval afugentá-lo e instaurar, ainda que por curto período, a satisfação de viver e explorar outras situações, outros códigos, outras máscaras, outras identidades.

2.

Em Atire em Sofia, a escritora utiliza o carnaval em um contexto de afirmação identitária e étnica da personagem Milena, jovem negra de classe média alta que, ao lado do namorado rastafari Tetu, assiste ao desfile dos blocos afros "Ilê Ayiê, Araketu, Olorum Baba Mi, Male Debalê". A jovem educada nos moldes burgueses busca, ao longo da narrativa, por um lugar de pertencimento identitário e de contestação à ordem burguesa. A personagem enfrentava a sociedade através da música (inicialmente o rock e em seguida os ritmos afros); dos movimentos urbano estético-musicais punk e afro dos anos 80 e 90 que questionavam os valores burgueses e através do comportamento de subversão étnica e de gênero, desafiando a família ao namorar um jovem negro e rastafari.

O espaço do carnaval abraça simultaneamente múltiplas e diferentes imagens, linguagens que, no texto, podem ser exemplificadas pela "visão" de Jim Morrison, vocalista da banda The Doors, cantando em um trio elétrico, clamando pela desordem e pela "politização erótica" ou pela concomitância de registros diferentes através das "músicas de protesto" e de afirmação cultural dos blocos afros e da transgressão rítmica "enlouquecida" dos trios elétricos. As diferentes expressões de postura desrepressora representadas pelos gestos, pelos sons, pelas imagens desconexas, muitas vezes justapostas, provocam na personagem - lugar da resistência - a ruptura dos traumas de sua educação, desatando os nós morais oriundos das coibições que, para a mulher, tem relação com a sexualidade, duramente controlada pelos artefatos produzidos pela sociedade burguesa e judaico-cristã. O carnaval aparece como território das possibilidades, do permitido, da erótica e da política já que se instaura como voz dissonante ao discurso consensual.

O rock inscreveu-se, em um momento histórico, como linguagem de contestação produzida em contextos culturais e sociais alicerçados pelo código burguês. Os ritmos afros inscrevem [e são inscritos] na cultura baiana, sobretudo de Salvador, como linguagem de protesto e de afirmação identitária de dicção étnica de matriz africana, sobretudo nos anos 80 quando o ritmo dos tambores começaram a ganhar espaço na mídia.

3.

A narrativa produzida por Amélia Rodrigues explora as manobras produzidas pela norma social para disciplinar e controlar o comportamento da mulher ao mesmo tempo que registra a resposta da personagem traduzida na disposição em construir outro caminho - metaforizado pelo carnaval - de viver em sociedade.

No texto de Sonia Coutinho, o carnaval alcança dimensões políticas que atravessam as categorias de gênero e etnia já que é no espaço do riso que a personagem consegue transpor e experimentar livremente, numa explosão de linguagens, imagens e sons, as suas atitudes com liberdade.

Reenvios:

COUTINHO, Sonia. Atire em Sofia. Rio de janeiro: Rocco, 1989.

RODRIGUES, Amélia. Do meu archivo: contos e phantasias. Bahia: Livraria Nossa Senhora Auxiliadôra, 1929.

SOIHET, Rachel. A subversão pelo riso. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Mais um poema de Maria Zita

Decanta:


Quero viver! Cantar ao som da lira
Do amôr materno a estrofe péregrina,
Enlevada nos meus sonhos encantados,
Engolfar-me na poesia-luz divina!


Sentir que estalma louca pelo Bélo
Flutua, oscila em ondas de harmonia...
Da existencia olvidar as dôres
Ascendente á região da fantasia!


La nesse mundo eternamente azul,
Palpita a vida, canta e fulge o amôr;
O sorriso é uma doce melodia
E a beleza tem a forma de uma flôr!

Mas eis que a vida se me esvai aos poucos...
- Quanto é triste do túmulo a noite infinda!
Deus! Ó Deus! Daí-me o alento que me fóge,
Quero viver! Quero cantar ainda!...
Maria Zita
Bom Jesus dos Meiras, 1942.

O tema liberdade parece ser central na literatura de autoria feminina. Neste poema de Maria Zita,  o título já sugere um gesto metalinguístico e de libertação no próprio fazer poético. O uso do ponto de exclamação insinua um entusiasmo que beira a um doloroso e impotente estado de encarceramento que contrasta com o desejo de "cantar ao som da lira". O eu-poético, que anseia por um estado que parace não ter,  acaba fissurando este interdito em outro plano no qual a poeta insere a sua escrita, numa delicada e agonizante denúncia da sua condição social, amenizada pela literatura. O eu-poético, que é também um eu que escreve o poema, disfarça, num jogo especular, a sua dor.   Os dois mundos existentes, um real e doloroso, e um outro imaginativo e mais acalentador, fazem o eu-poético "flutuar", "oscilar" e "palpitar", verbos que indicam movimento. Podemos pensar em flutuar como algo que se movimenta solto, livre de uma base, suspenso no ar ou, ainda, sem rumo, como um corpo flutunado no mar ou no ar. Já oscilar aproxima-se dos sentidos de flutuar porque sugere imprecisão, incerteza e, por fim, palpitar que nos remete ao sentido de vibração, de tremulação. Todos essas sensações não são vividas na realidade que, em oposição, aparece como bem ancorada, precisa e inerte.


A primeira estrofe produz um grito sufocado, de interditos acumulados, que aprisionam a mulher; as duas estrofes que seguem parecem expressar que o eu-poético alcança o estado de liberdade através da poesia, momento em que é permitido à mulher libertar-se de algo que a aprisiona e a deixa infeliz, e, por fim, a última estrofe quando a voz poética anseia por escrever poesia, com o tom diferente em relação a primeira estrofe, pois entra em estado de desolação e de inconformidade, perceptíveis na marca da conjunção adversativa "mas". A última parte do poema situa o eu-poético para a realidade e, por isso, diante da impossibilidade de resolver a sua situação, de ver a sua vida se esvaindo, lança-se ao metafísico em busca do alento que ela só encontra na poesia: "quero viver, quero cantrar ainda!..."

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Maria Zita: poeta de Caetité

Quando estive em Caetité, pesquisando no Arquivo Público da Cidade para conhecer melhor a sua história, deparei-me com jornais que publicavam poemas escritos por mulheres. Uma das escritoras chamava-se Maria Zita,  autora dos livros "Violêtas" e "Poesias" e colaboradora do jornal A Penna, de João Gumes. Um dos poemas foi em sua homenagem:

João Gumes (no meu pensamento)


Tu que empenhaste pena vigorosa
Em prol deste sertão menosprezado,
Clareando-o com luz esplendorosa:
- O teu talento privilegiado;


Tu que fizeste a empresa gloriosa
Surgir neste sertão abandonado;
Pondo "A Penna" brilhante e valorosa
De todo empr'endimento nobre ao lado

Tua lembrança o tempo não consome;
Ligada está a Caetité o nome ...
Dorme em paz o teu sono derradeiro!

Teu nome não cairá jamais no olvido.
Descansa! Has de viver onde fôr lido,
Um capítulo só 'O Sampauleiro!

(Maria Zita)
Bom Jesus dos Meiras, 08 de maio de 1930
(transcrito d'A Penna)

O poema foi escrito oito dias após a morte de João Gumes, intelectual e fundador do jornal local, A Penna, em 05/03/1897. Gumes nasceu em 10/05/1858 e faleceu em 29/04/1958. O jornal A Penna, assim como as produções literárias de João Gumes, tematizava o problema da migração dos sertanejos para o sudeste do país, principalmente São Paulo, e o analfabetismo. Em O Sampauleiro, por exemplo, além da migração, o romance focaliza um problema de gênero ao mostrar os problemas enfrentados pelas mulheres quando os seus maridos viajavam e não mais voltavam.  Sozinhas e com filhos tinham de proteger a casa e manter a sobrevivência de si e dos rebentos. Problemas que são ratificados no verso de Maria Zita quando se refere a um sertão abandonado, menosprezado e esquecido. O tom laudatório, propício para o evento, não esconde a posição política da autora que, assim como o escritor, percebia as consequencias danosas de um lugar que vivia à margem das capitais e dos grandes centros urbanos, esquecido completamente. Diante de tal descaso, restava ao sertanejo intelectual, artista ser voz dissonante, contestatória.

Maria Zita em seus versos aponta o Sampauleiro como a grande contribuição de João Gumes para a cultura sertaneja e através do qual ficaria conhecido na história.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

SOBRE A LITERATURA INFANTIL

Eu não sou uma estudiosa em literatura infantil, mas tenho tido alguns encontros com esta vertente da literatura, sobretudo porque agora faço parte do Departamento de Educação e, portanto, com maior possibilidade de leituras sobre o tema.
É muito interessante perceber a história da literatura infantil e de como a tecnologia acaba definindo o suporte de interatividade, mudando o acesso e a forma de ler. Até chegar à internet, a literatura infantil tem percorrido caminhos que vão desde a transcrição das narrativas orais com auxílio da tinta e do papel, atravessando a revolução industrial com a ajuda da prensa até chegar na revolução tecnológica contemporânea dos meios audiovisuais e digitais por meio dos quais as narrativas são gravadas, filmadas e digitadas.

O curioso é que, assim com a literatura "adulta", a literatura infantil também se estruturou a partir de coletas de material da tradição oral. Quem assistiu ao filme "Os Irmãos Grimm", estrelado pelos excelentes atores Heath Ledger (falecido) e Matt Damon, sabe do que estou estou falando. No filme, os irmãos Grimm vivem da transcrição dos contos narrados oralmente pelas pessoas. Provavelmente a delimitação e a fronteira entre a literatura adulta e infantil começou a se desenhar à medida em que uma nova ordem se estruturava e para que ela se estabelecesse era necessário que as ideias fossem divulgadas desde cedo a fim de formar o novo cidadão, o novo sujeito lapidado pela nova ordem social e que pudesse mantê-la, sustentá-la.

Assim, os contos de fada começam a ser transcritos e adaptados de acordo com as necessidades e valores da classe emergente e por isso tiveram uma tônica tão pedagógica, enaltecendo comportamentos que atendiam a ideologia burguesa. As fábulas de Esopo, de La Fontaine que reportam a tempos memoráveis, Esopo ano 6 a.C e La Fontaine ao século XVII, passaram a circular amplamente nos livros de português pelo menos até os anos 70. Com uma nova ordem social para se fortalecer, recorrer às fábulas moralistas significava o esforço de compor um espírito sólido desse novo cidadão.

Já os irmãos Grimm reportam ao século XVIII e Charles Perrault ao século XVII, ambos escreveram contos de fadas. O volume de publicações sobre uma literatura voltada para crianças ganhou grandes proporções, já que para a ordem burguesa a maternidade passa por redefinição que, por sua vez, reinventa também a infância.

Hoje em dia, é possível encontramos uma literatura no Brasil para crianças com escritores especializados no tema. Ruth Rocha é uma dessas escritoras contemporâneas especializada em literatura infantil. No entanto, escritoras que ficaram famosas com uma literatura para adultos também teve o seu momento de escrever para o público infantil. Clarice Lispector foi uma delas.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

A prosa poética e ensaística de Lya Luft

Li há muito tempo o romance Retratos de Família de Lya Luft, escritora gaúcha, responsável por inúmeras páginas de literatura  profundamente sedutora: enxuta, poética e existencial. Talvez seja uma marca da geração de 60, escrever para se conhecer e conhecer o outro. Assim é a literatura de Lya Luft, mas não apenas dela, mas de toda uma geração marcada a ferro e fogo pelo patriarcado. O romance ao qual me referi é um dos mais violentos e belos que já li porque envolve o leitor em um mundo bastante conhecido, expondo as suas feridas, mas oportunizando-os a dar o salto e sair de um ressentimento inconsciente. As origens de seus traumas e de sua dor confundem-se em um emaranhado de gestos de amor e cuidados, talvez por isso seja tão conflitante. Com uma linguagem impactante a voz narrativa tece as angústias de seus membros e com as quais o leitor passa a ser cúmplice sem pudor ou censuras.

Quase todas as produções publicadas nos anos 80 depõem contra a ordem patriarcal, destacando o pai como autoridade única, violenta e distante. O pai reúne e materializa um modelo que organiza as relações em torno da figura masculina austera e de violência implacável seja ela o pai, o marido, ou o irmão, a partir do qual os outros membros obedecem amedrontados ou dissimulam-se. Muitas vezes a mãe internaliza a fúria patriarcal, transferindo para os filhos o pavor e o medo que sente na condição de esposa. Para os filhos, a relação com a mãe é mais conflitante já que ela aparece como fonte de carinho e afeto, de alimentação e apoio, mas pode transformar-se em uma figura de perversidades inconfessáveis. 

Quero trazer aqui mais dois romances da referida escritora, publicado recentemente: O Ponto Cego, de 1999, e Histórias do Tempo, de 2000. O primeiro retoma um tema muito presente nas produções de Lya Luft, mas, também, das escritoras contemporâneas: a família patriarcal. Neste romance, a história é tecida comos fios das relações familiares: um casal e dois filhos, um menino e uma menina, formam as vidas que tecem o cotidiano familiar, sendo que o menino narra a história. Essa estrutura familiar não é despretensiosa, pois ela representa a família nuclear burguesa, alvo de crítica das escritoras na medida em que a família nuclear representa a destruição de vidas, logicamente, pensando da forma em que a família foi pensada.

O menino significa e constrói sentidos, tendo como eixo principal a sua vida e a de sua mãe:


"Esta é a história de um Menino e da Mãe do Menino: uma história de muita sombra. História de desvãos, do embaixo, do secreto. Narração de olhares, de um olhar. História de invocações"
A voz em terceira pessoa mescla-se à da primeira, sugerindo um mascaramento no plano narrativo de vozes que, como num palimpsesto, dialogassem: um adulto e o seu menino que mergulhando em sua infância traz as emoções interpretadas pelo adulto que o acompanha.

Um bom disfarce no plano da narrativa.

O menino vê as pessoas se inventando, com suas aflições e conflitos. O pai autoritário, que se esforça em conduzir a família por meio de regras e valores, acaba sendo flagrado com a empregada pelo filho; a irmã inventada pelo pai para lhe suceder e a esposa infeliz que no final resolve libertar-se de tudo e parte com o namorado da filha compõem a carga dramática da narrativa.

Com esse romance, Luft coloca novamente e, incansavelmente, a família, como o espaço para se dizer e não para ser silenciado e intocado, mas para ser o centro das discussões. A família que representa a base e sustentáculo do projeto burguês e cuja promessa de felicidade para seus membros parecia inundar as suas vivências de realização plena,  é mostrada repleta de falhas irreparáveis. O lar doce lar é visto com as lentes da experiência cotidiana, exposta e rasurada sem máscaras e contada com a leveza e dor de um menino.

Já em Histórias do Tempo, o livro é estruturado apoiando-se em gêneros diferentes. Há poemas em cada parte do livro e a narrativa é um misto de romance e ensaio, pois ao mesmo tempo em que a voz narrativa se põe a narrar a si mesma, ela vai refletindo sobre a sua existência, daí porque não se trata apenas de um romance, mas de um gênero híbrido.

Neste livro, uma mulher casada resolve falar de suas experiências, destacando as diferentes faces que a constituem. Me fez lembrar de Mulher no Espelho, de Helena Parente Cunha. Em Luft, Medésima e Altéria são a mesma mulher, mas cada uma agindo de uma forma e dialogando entre si.  "Altéria me impede de morrer esmagada no cotidiano - imperioso e também encantador - dos meus deveres e dos meus amores."

As duas personagens tão diferentes e tão necessárias uma a existência da outra faz do livro Histórias do Tempo uma narrativa deliciosa de ler e ao mesmo tempo provocadora.

Histórias do Tempo e O Ponto Cego são duas produções literárias que não podem deixar de faltar na estante de um voraz leitor da literatura brasileira.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

O CINEMA NA LITERATURA


Nada neste mundo pode resgatar as suas perdas  (Sonia Coutinho, O Enigma de Greta Garbo) 

Durante o meu doutorado, enquanto levantava ideias para escrever a tese, fiquei com uma na cabeça, mas que somente poderia retomá-la em um outro momento: a presença do cinema na literatura de Sonia Coutinho.

Em seu livro de contos Último Verão de Copacabana, publicado em 1985 e relançado no ano passado pela editora 7 Letras, existem dois contos que nos remetem ao cinema. Um deles se chama Toda Lana Turner tem seu John Stompanato e o outro conto O Enigma de Greta Garbo.

O primeiro é uma narrativa em primeira pessoa cuja voz é de uma mulher. O leitor entra em contato com a história da personagem principal, que é uma mulher, por meio da voz narrativa que não se distancia das experiências vividas da personagem, muito embora se reporte a ela na terceira pessoa. Ao ficcionalizar-se e ficcionalizar o outro, a voz narrativa desestabiliza a idéia de que a voz do narrador apenas narra episódios e como é onisciente conhece o que se passa com a personagem. A voz narrativa do conto de Sonia Coutinho mostra-se oscilante e sem pretensões de ser uma voz que enuncia a verdade. Ao contrário, a narrativa é produzida por outras narrativas, no caso do conto, por textos de revistas e pela história de vida de mulheres. Nesse jogo especular em que as imagens se desdobram infinitamente, a voz narrativa se solidariza com a personagem que está lendo uma matéria sobre a vida pessoal da atriz Lana Turner, mostrando uma face menos glamourizada pela mídia.
A mídia revolve o passado e escrutina o presente em busca de acontecimentos que possam adqurir contornos dramáticos, trágicos. A matéria falava do assassinato do amante de Lana Turner, Johnny Stompanato, pela sua filha que presenciou a mãe sendo agredida pelo amante. O conto de Sonia Coutinho traz um recorte da vida da atriz hollywoodiana, pertencente ao star system, no qual três vozes se entrecruzam: a da narradora, a da personagem e a voz que dá sentido a matéria. Além disso, em inúmeras passagens existem momentos em que a reflexão é inevitável, quando a personagem põe em questão a "verdade" que as matérias jornalísticas geralmente se valem para alcançar seus propósitos. É sobre esse efeito de "verdade" que o conto vai sendo tecido.

Já o Enigma de Greta Garbo traz a história de uma mulher de 40 anos aproximadamente, de classe alta, casada, que possui vários amantes. Ela mora em Nova Iorque por causa do trabalho do marido. A sua ocupação de dona de casa é agonizante, o que a deixa deprimida, chegando mesmo a pensar em suicídio. Durante um encontro com um de seus amantes, a protagonista avalia a sua relação e percebe que está se tornando tão estável quanto a do seu casamento. Por outro lado, a separação que ela ansiava não acontecia. Durante esse conflito, a personagem questiona o seu modo de vida, pensando em separar-se, mas justifica permanecer casada por conveniência, pois seria impossível de, naquela idade, conseguir um emprego que lhe assegurasse o conforto que tinha naquele momento, tendo que "começar do zero". Assim, ela continua com seu casamento, sabendo que não é relizada nele.

A idéia de enigma, mistério, é significado pelo olhar do personagem masculino que associa a personagem Cátia, à atriz Greta Garbo. Para Cátia, no entanto, o seu olhar aponta apenas para um outro lugar, como se estivesse ali, mas também em outro espaço, distante. É como se estivesse usando máscaras para driblar as regras sociais e, assim, poder sobreviver a elas.

É a consciência de sua condição, de sua existência humana dentro de uma sociedade patriarcal, que gera os conflitos existenciais tão dolorosos nas personagens. 

Ao trazer Lana Turner e Greta Garbo, Sonia Coutinho lança mão de experiências intertextuais em enlaçando a vidas das mulheres, mostrando que o patriarcado produz experiências similares entre as mulheres, daí porque o que acontece com uma atriz no âmbito pessoal acaba por encontrar empatia em outras mulheres quando passa a circular pelos jornais no mundo inteiro.

A geração de Sonia Coutinho, a de 60, é uma geração de escritoras ávidas por uma escritura experimental, tão profícua quanto a geração que testemunhou e engendrou mudanças sociais radicais e fundamentais para as mulheres. Aqui, Sonia Coutinho experimenta cinema, narrativa literária e jornalística em um único texto.

domingo, 2 de maio de 2010

QUEM É QUEM

Algumas pessoas têm me perguntado sobre as mulheres que estão no banner título do blog. Atendendo a pedidos, segue o nome das escritoras (ordem de leitura ocidental  - esquerda para direita e de cima para baixo).


Charlotte Brönte
Elizabeth Bishop
Doris Lessing
Katherine Mansfield
Virgina Woolf
Marguerite Duras
Mary Shelley
Helena Parente Cunha
Myriam Fraga

Você já as tinha identificado?

IMPRESSÕES SOBRE A LITERATURA CHICK LIT

"Chick lit é um gênero ficção dentro da ficção feminina, que aborda as questões das mulheres modernas. Chick-Lits são romances leves, divertidos e charmosos, que são o retrato da mulher moderna, independente, culta e audaciosa." (wikipédia)


A definição parece agradar as feministas, pois trata-se de romances protagonizados por mulheres, mas como todo discurso ardiloso, o enunciado prepara para um "mas" sobre essas mulheres, tão "independentes" e com tantos atributos. Elas são representadas como insatisfeitas, já que, em sua vida pessoal, as coisas parecem não "funcionar" tão bem. A questão é que as mulheres bem-sucedidas, como as que são mostradas por este tipo de literatura, convivem ainda em uma sociedade cuja cultura de gênero permenece inalterada. Apesar de não ser diretamente uma crítica ao sistema misógino que alicerça as relações contemporâneas de gênero (aliás está bem longe disto), o chick lit, se interpretado sob a ótica feminista, parece nos dizer isso.

As protagonistas do chick lit são todas mulheres, em geral maduras, com aproximadamente trinta anos, momento em que começam a se estabelecer na carreira profissionl. É a fase da vida em que elas já cruzaram a juventude e estão estabelecidas (falo de uma classe média, média alta) e se preparam para ampliar os seus rizomas. Estão mais criativas e é nesse momento que incide contra ela todos os apelos da maternidade e do príncipe encantado. São mulheres que mergulharam na profissão, em geral trabalham nas grandes corporações, vivenciando todas as pressões cotidianas em torno das exigências que a sociedade faz à mulher: ela "pode" galgar os mais altos postos de uma empresa, desde que mantenha os elementos que o homem considera desejáveis: a feminilidade, por exemplo.

Os romances desse gênero salientam que as mulheres estão mais preocupadas em partir em busca de um marido que lhe possa dar filhos do que na manutenção de sua carreira profissional. Depois de alcançar a estabilidade, os romances chick lit trazem uma leitura invertida da mulher contemporânea e transforma o mal-estar daquelas afetadas pela mítica feminina (FRIEDAN) em uma relação inversa: se as mulheres dos anos 50 se sentiam "incompletas", infelizes com os seus limitados papéis de esposa e mãe, as protagonistas do chick lit estão se sentindo "inacabadas" por não terem um marido e filhos. Falta-lhes estarem dentro de uma estrutura legítima - a família nuclear/burguesa. A lógica permanece binária e oposicional. A crise que os romances chick lit apresenta da mulher adulta, urbana, contemporânea parece revelar os resquícios de uma sociedade que pensa nos moldes patriarcais, mas que desistiu de partir para o embate frontal com as feministas e perceberam uma arma poderosa para destruir as conquistas das mulheres, sem aparecer como algoz: a linguagem. Por sua polissemia, seu deslizamento semântico e suas multifaces, a linguagem se torna peça fundamental (e não é de agora) de um jogo de poder, muito mais complexo, dada as tecnologias, que só através de um dispositivo de crítica igualmente sustentado pela linguagem podería identificar as nuances das relações de força presentes nos discursos. Hoje a análise do discurso crítica (FAIRCLOUGH;WODAK;VAN DICK) é a que pode nos oferecer conceitos -chaves para interpretar os textos que passeiam à nossa volta.

Nos romances chick lit, o que as protagonistas mostram é a falência de um projeto burguês para as mulheres e, mais uma vez, a tortura pela qual as mulheres passam dentro desse projeto. A necessidade de procurar um marido expõe o refluxo pelo qual passamos, obrigando as mulheres a abrirem mão de suas conquistas em prol de um romance.

O que há de mais sedutor neste tipo de romance é que ele provoca uma onda de escapismo para as mulheres, como se estivessem em um ringue e necessitassem "jogar a toalha". Há pouco tempo li um romance desse gênero intitulado Manhunt, da escritora norte-americana Janet Evanovich. A capa do livro, como vocês podem ver ao lado já diz muita coisa: um amor na cabana. A protagonista, Alexandra Scott, é uma mulher de aproximadamente trinta anos que sai de Nova Iorque para o Alasca para encontrar um marido porque não há mulheres suficientes lá. É uma mulher bem-sucedida profissionalmente, mas que deseja um homem (daí o título do romance ser manhunt que significa "perseguição") e com ele ter filhos.

“One of the reasons I came to Alaska was to find a husband” (título de abertura do romance)

Depois que um colega, Harry  Kowalski, lhe vende uma cabana e uma loja, ela segue viagem para o Alasca com o seu cachorro rotweiller, Bruno. Algumas peripécias levam-na ao encontro de um homem, Michael Casey, que é representado como o seu "protetor" (palavra fundamental neste tipo de romance, já que as mulheres, apesar das responsabilidades e  independência, são vistas como infantis, carecendo de algum homem que as tutelem. Até um cachorro serve para potegê-las). Já no primeiro encontro, ele "resgata" Bruno após ter caído na água ao aportarem no Alasca. Depois de passar por situações extremamente constrangedoras com Casey, como a de ser oferecida para os homens da cidade, após ter revelado o seu propósito ao seu "protetor", Scott se percebe apaixonada pelo seu algoz que ora a proteje e ora a "oferece aos lobos". Nesse jogo psicológico, cresce a necessidade de fazer parte da vida de Casey que a envolve em um mistério, já que não quer se casar e muito menos ter filhos. A sua vida pessoal não é mostrada de imediato, um recurso que visa adminsitrar o tempo de leitura e provocar a adesão da leitora que, assim como a protagonista, quer saber das viagens misteriosas de Casey e das suas aparições súbitas, mostrando-se exageradamente protetor.

Os romances chick lit são uma versão daqueles pequenos livros que eram vendidos nas bancas de revistas do Brasil e que recebiam nomes femininos: Júlia, Sabrina, Bianca. Porém, muito mais glamourosos e ambientados em um contexto mais urbano e contemporâneo. As protagonistas dirigem BMWs, mas não as suas vidas.

O romance de Evanovich termina com a protagonista sendo lesada pelo colega Harry que toma de volta a cabana e a loja, depois que ela faz a reforma e sente-se pertencida ao lugar. Espera-se que ela o acuse de mal-caratismo e acione um advogado, mas ela sequer esbraveja porque Casey já havia lhe pedido a mão em casamento.

sexta-feira, 12 de março de 2010

CHICK LIST: UM GÊNERO LITERÁRIO

Estava lendo o Jornal A Tarde Online despretensiosamente como de costume, preenchendo o intervalo entre a insônia e a vontade de dormir. No topo da página do Jornal estava uma matéria com a foto da atriz Anna Hathaway com o seguinte título "Literatura leve, chique e feminina". Tive curiosidade de ler a matéria e logo descobri um novo gênero literário: o Chick Lit, isto é, romance escrito para mulheres cuja protagonista é sempre uma mulher moderna, urbana, descolada, vivendo os problemas de uma grande cidade. São mulheres em geral jovens, bem-sucedidas, mas que vivem relacionamentos conturbados. Alguns traduzem como literatura para garotas, outros como literatura para mulherzinhas. Para se ter uma ideia um dos mais conhecidos representantes desse ipo de literatura é O Diário de Bridget Jones, de Helen Fielding.

Você já leu algum romance do gênero Chick List?

domingo, 7 de março de 2010

REFLEXÕES SOBRE LITERATURA FEMINISTA

Sempre foi muito difícil para a academia aceitar os estudos feministas como uma abordagem de análise literária. Tive a sorte de iniciar os estudos ainda na graduação quando estudei as representações de mulheres através dos autores, considerados clássicos. Os romances de José de Alencar - Lucíola, Senhora e Diva - formavam uma tríade de perfis femininos amplamente estudados por pesquisadoras de todo o Brasil. Portanto, uma das formas de estudar a mulher na literatura foi (e ainda é) através dos escritos dos homens, única voz considerada autorizada a fazer arte, até porque acreditava-se que o gênio artístico guardava uma porção divina da qual as mulheres não faziam parte, pelo menos na condição de criadoras. No máximo, chegavam a ser musas a inspirar.

A historiografia literária no Ocidente sempre foi uma atividade reconhecidamente masculina, mas isso não impediu que as mulheres escrevessem. Elas apenas não eram lidas, no entanto conseguiam furar o cerco fazendo uso dos pseudônimos. Quem poderia imaginar que George Sand era o nome de Amandine-Aurore-Lucile Dupin ou que George Eliot era o nome de Mary Ann Evans, todas escritoras do século XIX?

A crítica literária feminista percebeu que o patriarcado, com  seus valores centralizados no poder do homem, estava em toda parte, por isso ela tratou de responder como os papéis sociais desempenhados por homens e mulheres, atualizados a partir da visão burguesa, excluiam as mulheres de algumas atividades, principalmente as que cuidavam do desenvolvimento do espírito. Atividades que lhes trariam liberdade de pensar, de escolher, de discernir, que possibilitariam outros avanços a partir de uma postura independente e que certamente lhes trariam mais opções de se realizarem como pessoas, de viver as emoções, os sonhos e as possibilidades  oferecidas pela vida.  

Uma das questões iniciais formuladas pela crítica feminista era se as mulheres de fato não escreviam e, por isso, os homens eram constantemente tidos como referência literária ou se as suas produções eram boicotadas e neglicenciadas pela crítica que, por sinal, era masculina. Ora, o papel da crítica era ler os textos literários e discorrer sobre a obra, em geral atribuindo-lhes um juízo de valor. Sendo a crítica formada por homens que eram educados para considerar o engenho como atividade masculina, era previsível que eles rejeitassem as produções das mulheres. E se as mulheres não escreviam críticas, como as escritoras poderiam ser lidas e respeitadas? A saída de algumas mulheres foi escrever dentro de um modelo masculino e analisadas a partir de abordagens masculinas. Assim, algumas poucas conseguiram fazer parte das Histórias da Literatura Brasileira. Rachel de Queiroz foi uma delas. 

Atualmente a crítica feminista na literatura tem sido responsável: pelos estudos das produções de mulheres do século XIX e temos conhecimento de que elas escreviam muito; pela reedição de livros esgotados e raros; por uma crítica que possa dar conta de explicar as questões do universo das mulheres, enfim, tem sido responsável por tornar o esforço de muitas mulheres reconhecido por pessoas posteriores à sua época. Apesar de elas não estarem mais vivas para ver que seus dias de dor e solidão se transformaram em momentos de prazer e de novos caminhos para outras mulheres, vale-nos agradecer imensamente a essas persistentes mulheres de outrora por elas terem insistido. Falta-nos infelizmente tornar esses textos mais acessíveis para os jovens e sensibilizá-los para a importância deles na cultura de um país.  

Para a nossa alegria, temos o privilégio de ler textos de escritoras contemporâneas como Myriam Fraga, Sonia Coutinho, Helena Parente Cunha, Lya Luft, Marina Colasanti, Lygia Fagundes Telles, Márcia Denser e tantas outras.

As imagens são (de cima para baixo): Nísia Floresta, Amélia Rodrigues e Josefina Álvares de Azevedo.