quinta-feira, 22 de outubro de 2009

A DAMA E O UNICÓRNIO


"Desenho o teu perfil
Como um bordado;
Matiz e labirinto.

Uma anca abaulada,
Um pé suspenso
E a cabeça
De encantado.

Passeias nos meus sonhos,
Nos meus bosques
De sombra e solidão.

Solitário também
E assustado:
Tão dedicado risco
A Senhora e o Unicórnio: "A visão
- Elfo e onagro. Fonte: wikipédia

Nunca virá a mim.
Por mais que espreites
(E te espreite)
Não virás.

Desejas no entanto
Meu regaço.

Mas nunca o terei nos braços.

... Nunca o doce
Calor de seu pelo,
Nunca o suave
Parafuso do chifre...

- Que linha furiosa nos separa?

Neste jogo de espelhos,
Divididos,
Nos buscamos em vão.

Não me escutas,
Nem voltas a cabeça.

Nem eu atiro o laço."

(Do livro FEMINA, 1996)


Quando li A Dama e o Unicórnio pela primeira vez estava no curso de especialização da UFBA e iniciando com mais profundidade os meus estudos feministas acerca das questões de gênero. Imediatamente elegi esse poema de Myriam Fraga como um dos mais "gendrados" de sua coletânea. O verso "-Que linha furiosa nos separa" mostra a grande separação que a cultura nos legou entre os pólos diferentes, o feminino e o masculino ou o homem e a mulher, num jogo binário e oposicional que sustentou (e tem sustentado) as práticas sociais no ocidente, levando as pessoas, mulheres e homens, a se rivalizarem ao invés de se perceberem, em suas diferenças, como apenas diversos.


No poema, o olhar reciproco, ou melhor o espreitar recíproco, traduz esse interesse mútuo, mas que se perdeu ou tem se perdido no estrabismo que embaça, produz o estranhamento mútuo. Espreitar significa observar às ocultas, prescrutar, sondar, observar atentamente e, por mais que as duas partes assim se comportem um em relação ao outro, uma "linha furiosa", forte e violenta, impede que dois universos distintos se vejam, se aproximem, se percebam e se entendam. O ocidente criou esse abismo dos gêneros através de diferentes recursos. Aqui a poesia de Myruam Fraga espreita o mito, o código literário ocidental, indaga-o e lança para o leitor a tarefa de pensar: "Que linha furiosa nos separa?"


A Dama e o Unicórnio nos lança ao mito dos encontros impossiveis, pois reza a lenda que o animal só se curvaria diante de uma virgem que em seu colo, ao adormecer, lhe tiraria o chifre. Isso significa que para que houvesse um encontro, um deles teria de perder a força. A narrativa ocidental mítica mostra que a força indomável é aplacada pelo gesto calmo da mulher que neutraliza a violência, representada simbolicamente pelo chifre quando ela o retira, para enfim poderem estar em equilíbrio. O ocidente distorce ainda o mito ao mostrar uma leitura invertida, mostrando que a mulher ao possuir o chifre passa a dominar o homem.


A poesia de Myriam Fraga questiona essas leituras hierárquicas nas relações e propõe uma reflexão sobre a ideologia que tem sustentado as relações desiguais de gênero que separa violentamente mulheres e homens, o feminino e o masculino, e, sobretudo, conferindo poderes a um.
Fonte: A imagem intitula-se "A Senhora e o Unicórnio - A visão"

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