sábado, 23 de junho de 2012

BRANCA DE NEVE: UMA HISTÓRIA SOBRE PODER, BELEZA E GÊNERO

Chris Hemsworth e Kristen Stewart. Foto: divulgação
"Beleza é o meu poder.
Lábios vermelhos como o sangue, cabelos pretos como a noite...Me dê seu coração, minha querida Branca de Neve." (Ravenna)

O conto de Branca de Neve escrito pelos Irmãos Grimm no início do século XIX, portanto, momento em que a burguesia estava ampliando as suas ideias e disseminando valores pela Europa, mas, sobretudo, em outros continentes, tem a sua primeira edição em 1812 e narra a história de uma princesa órfã, Branca de Neve, que é expulsa do castelo ainda criança pela madrasta que percebe estar perdendo poder para a menina que começa a despontar e a se destacar sexualmente. Esta sensação de perda de poder é figurativizado pela perda da juventude, fase que será associada à beleza, para justificar o destino último de realização da mulher pelo casamento. Este é um elemento-chave no conto e é em torno deste aspecto que uma nova sociedade irá se organizar. É importante ressaltar que o casamento na época ocorria muito cedo entre as mulheres, não sendo rara a preocupação dos pais quando a jovem chegava aos vinte anos sem ter contraído matrimônio.

Charlize Theron/Ravenna. Foto: divulgação
Não sabemos ao certo o quanto foi alterado durante a compilação pelos Irmãos Grimm, mas é sabido que as mudanças ocorreram em função de uma nova visão de mundo, um modelo de sociedade que estava se reestruturando. Neste sentido, coube aos intelectuais da época absorver as narrativas populares e introduzir nelas a ideologia burguesa a fim de popularizar e universalizar o modelo de relações que atravessariam as narrativas ficcionais na modernidade, sobretudo as do período romântico. Portanto, o interesse pelo popular no século XVIII e XIX coincide com a revolução burguesa e, portanto, reúne dois movimentos discursivos: o nacionalista, que preparava homens e mulheres para o amor à pátria, e o amor romântico, que preparava homens e mulheres para o exercício da intimidade, das relações familiares. Deste modo, não podemos desconsiderar que os contos de fada fazem parte de um projeto de reconstrução do tecido social, orientando mulheres e homens mentalmente, modificando a visão de mundo e o seu comportamento diante de si e do outro.

Charlize Theron/Ravenna. Foto: divulgação
O conto de fadas de Jacob e Wilhelm Grimm sobre a menina órfã expulsa pela madrasta, devido ao medo desta perder o poder, possui uma estrutura interna que pode ser analisada a partir de elementos diferentes. Vou me apropriar de dois aspectos da narrativa que nos contos de fada têm papel preponderante: o lugar e a personagem.

Em Branca de Neve dos Irmãos Grimm, a protagonista é criada pelo pai até a idade de aproximadamente sete anos, embora no conto não haja essa referência exata, subtende-se pela articulação da linguagem da menina durante o diálogo com o caçador na floresta. Até então, sabe-se pouco sobre a vida da criança, apenas que perdera a mãe e que depois fora criada pela madrasta em segunda núpcias do rei. A madrasta, no decorrer do tempo, resolve mandá-la para a floresta onde o caçador (ou o servo segundo algumas traduções) lhe tiraria o coração e as vísceras e as levaria para a rainha. Branca de Neve, neste momento, pede clemência ao caçador que se apieda, levando no lugar do seu coração e vísceras, as partes de um cervo. Durante o tempo em que a madrasta acredita ter matado Branca de Neve, esta passa a viver com sete anões que, enquanto provém a casa, em troca, exigem que Branca de Neve cumpra as tarefas domésticas. A rainha descobre que Branca de Neve está viva e resolve pessoalmente matá-la, transformando-se em mulher do povo. A rainha faz três visitas à Branca de Neve: na primeira leva um cordão com o qual aperta o corpete da jovem; na segunda, leva um pente envenenado e na terceira uma maçã. Em todos os momentos, Branca de Neve foi advertida e ajudada pelos sete anões que a despertaram, exceto da última vez, quando apenas o príncipe consegue fazê-lo, no momento em que movimenta Branca de Neve da caixa de vidro e, em razão do movimento, acaba expelindo a maçã envenenada. Branca de Neve acorda e casa-se com o príncipe.

Chris Hemswoth (Eric/Caçador). Foto: Divulgação
Se tomarmos a protagonista como condutor da nossa análise, veremos que, do ponto de vista espacial, a sua movimentação se dá em torno de três espaços:

1) Em seu castelo, na verdade de seu pai, depois que a madrasta usurpa de Branca de Neve que é dada como morta;

2) Na floresta, espaço do perigo, do conflito e da solidão;

3) Na casa dos sete anões, espaço da acolhida e do restabelecimento do equilibro, da aprendizagem do ser mulher – cuidar da casa e dos filhos (neste caso os sete anões);

4) No castelo do príncipe, lugar no qual Branca de Neve poderá aplicar o que aprendeu com os anões, isto é, ser boa esposa e mãe. No conto, este castelo não aparece. É uma promessa;

Foto: divulgação
O que acontece com Branca de Neve no filme de Rupert Sanders em relação aos lugares é interessante do ponto de vista de gênero. No filme, a expulsão de Branca de Neve (Kristen Stewart) não acontece. Presa no calabouço pela madrasta, a rainha Ravenna (Charlize Theron), após atingir a juventude, a protagonista encena o papel de jovem indefesa para o irmão, Finn (Sam Spruell), que se dirige à cela, a pedido da irmã, para tirar-lhe o coração. Antes de sua chegada, um pássaro pousa na janela e aponta para um prego de ferro com o qual Branca de Neve golpeará o irmão da madrasta. A fuga (e não expulsão) é um diferencial importante em relação ao conto, na medida em que a personagem enfrenta o perigo e decide sair sozinha do castelo no qual é cativa, orientada apenas por um elemento mágico, os pássaros. Depois de alcançar a sua liberdade, encontra um cavalo branco deitado na praia à sua espera, que a leva para a Floresta Negra, um lugar onde Ravenna não tem força.

Foto: divulgação
Esta passagem de um espaço a outro pela protagonista mostra a relação complexa e simbólica do castelo como lugar de poder político, de referência familiar (visão burguesa), mas também, no caso de Branca de Neve, de sofrimento. Já a floresta continua sendo o lugar dos perigos, mas a jovem consegue sobreviver, até que a madrasta manda o irmão juntamente com o caçador, Eric (Chris Hemsworth) para “caçá-la”. No entanto, ao ver Branca de Neve, o caçador se encanta por ela e desiste de matá-la, atacando os soldados da rainha e escapando do irmão, ao saber que eles não cumpririam o acordo de trazer de volta a sua esposa, morta pelo próprio Finn. O caçador tenta seguir seu caminho, embora Branca de Neve tente persuadi-lo a protegê-la. Durante a travessia pela floresta, o caçador ensina Branca de Neve a vestir-se adequadamente para a guerra, rasgando-lhe a saia, e deixando-a apenas de calça. Além disso, aprende a se defender e a atacar com a faca. Chegando a uma vila, encontram um grupo formado só por mulheres, já que os maridos tinham ido embora, que possuíam cicatrizes no rosto, estratégia usada como forma de se defenderem da madrasta que buscava a beleza nas mulheres para “aspirá-la” e permanecer jovem. Neste momento acontece a revelação para o caçador de que Branca de Neve é uma princesa. Ele pressente problemas e foge, mas ao se afastar percebe que a vila está sendo atacada pelo irmão da rainha e volta para ajudar as mulheres e crianças. Quando o caçador e Branca de Neve se afastam da vila, são capturados por oito anões, sendo que um deles morre em combate quando Finn os acha. No filme, não há referência à casa dos anões porque não há rito de passagem para a mulher em aprender os afazeres domésticos, pois o rito de passagem de Branca de Neve não consiste em transformá-la em esposa e mãe, mas em guerreira, portanto não caberia no filme fazer referência à casa dos sete anões.

O rito de passagem ocorre na floresta, enfrentando os inimigos da rainha e a própria, que se metamorfoseia no amigo de infância de Branca de Neve, William, que passou a seguir Branca de Neve disfarçado de arqueiro da rainha, meio pelo qual pôde participar da busca por Branca de Neve e, assim, se aproximar da jovem. O cordão e o pente, elementos que representam feminilidade e vaidade feminina foram suprimidos e sutilmente substituídos pela dança, que a personagem não realiza com graça, uma forma de desfetichizar ou desestereotipar qualquer traço de sensualidade, separando o significado do significante. No entanto, mesmo desajeitada, consegue atrair a atenção dos homens ali presentes.

Charlize Theron. Foto: Divulgação
Em se tratando dos elementos simbólicos, a maçã permanece no filme, mas a mordida ocorre em função de um jogo de infância, do desejo de “revidar” o que o amigo fez quando eram crianças: ele ofereceu a maçã, mas mordeu em seguida, não oferecendo a Branca de Neve. No momento em que ela se depara com a mesma cena de infância, Branca de Neve é vencida pelo espelho, que reflete uma frustração infantil e que na fase adulta ela tenta desforrar. Diferentemente do conto, cujo desejo centra-se na maçã, o objeto de desejo que representa o amor, no filme a maçã não é o objeto de desejo, mas o poder, já que o que motivou Branca de Neve a mordê-la não foi a cor ou a textura do fruto, mas a revanche. Os signos militaristas percorrem toda a narrativa fílmica, mostrando uma jovem preocupada muito mais em correr riscos, competir, desforrar, vingar-se, do que em ser objeto de desejo de outrem. Prova é que ela parece desatenta aos predicados dos personagens masculinos, com raras passagens de troca de olhares com o caçador. O jeito estranho da personagem, muitas vezes atribuído a falta de competência profissional, coincide mais com um deslocamento que talvez nem mesmo o diretor soubesse captar e que nem é sempre fácil: como desestereotipar a mulher sem resvalar numa versão masculinizada?

Foto: divulgação
A beleza parece não pautar os anseios de Branca de Neve, desejosa de reaver o poder usurpado pela madrasta. No conto, há a promessa de casamento e de fazer parte do castelo do príncipe, na condição de esposa, já no filme, Branca de Neve retorna ao seu castelo, herdado dos pais e usurpado pela rainha. Deste modo, o desenvolvimento psicossexual de Branca de Neve é atenuado em prol da busca pela sua emancipação política, social e econômica e do reino. Se no conto, o desfecho resume a realização pessoal da mulher por meio do amor e do casamento, no filme os dois são suprimidos, ou pelo menos não são principais, sendo a realização política e econômica o condutor das ações de Branca de Neve. No entanto, apesar desta percepção, não posso deixar de comentar um aspecto importante: ela só se sente encorajada depois que é beijada pelo caçador. É como se ela tivesse absorvido a força do amor (o bem) e em razão deste ter se inspirado a conduzir um exército para combater a rainha (o mal). Coincidência? Acidente? No cinema, as cenas não são acidentes, mas têm um propósito, dizem algo.


Foto: divulgação
 O final aberto pode significar uma ruptura com os filmes mainstreams, tão ao gosto do público, afinal, muitos torciam pelo final feliz apoteótico com uma festa de casamento ou simplesmente um beijo com o par romântico, mas, também, pode estar relacionado à possibilidade de uma continuação, o que é muito provável já que o filme foi bem acolhido pelo público.

Ficha Técnica:


Diretor: Rupert Sanders
Elenco: Kristen Stewart, Chris Hemsworth, Charlize Theron, Ian McShane, Toby Jones, Nick Frost, Ray Winstone, Sam Claflin, Bob Hoskins, Eddie Marsann, Lily Cole, Sam Spruell.
Produção: Sam Mercer, Palak Patel, Joe Roth
Roteiro: Hossein Amini, Evan Daugherty
Fotografia: Greig Fraser
Duração: 129 min.
Ano: 2012
País: EUA
Gênero: Aventura
Cor: Colorido
Distribuidora: Paramount Pictures Brasil
Estúdio: Roth Films / Universal Pictures
Classificação: 12 anos