terça-feira, 9 de novembro de 2010

"Desejos de enxames de abelhas nos laranjais floridos"

"Você está cansada de ver seu marido entrando e saindo com a pasta preta pregada na mão e os dois relógios agarrados no pulso e a voz hibernada. Em casa ele usa os chinelos nos pés sempre calçados de meias para não se resfriar. Você não quer mais passar a roupa da casa e contrata uma passadeira. Seu marido diz que é preciso economizar para comprar o apartamento de dois quartos à vista. Ele não gosta de se preocupar com prestações. Escassez definhável encurtar encurraladavelmente. Você se cansa de tomar conta da casa. Casada. Cansada. Cansaço cósmico. Destranscendência. Você quer entrar para a escola de belas artes. O marido arquiteto de sua amiga loura diz é bom as duas fazerem o vestibular juntas. Seu marido recua o rosto acuado e se tranca no quarto. Anéis cercos nós. Imersão. Desejos de enxames de abelhas nos laranjais floridos. Você ouve seu marido perguntar as horas e depois a dele voz dizendo em demoradas sílabas que quer fazer amor. Você está deitada na cama e abre as pernas sem nenhuma estrela acesa. Seu corpo está cansado do corpo de seu marido em comedidas ordenações. A luz do abajur apagada entre suas pernas apagadas. Cansada. Casada. Você está cansada do lado de cá. Mas onde a coragem? O lado de lá." (
(Helena Parente Cunha, do romance As Doze Cores do Vermelho, p. 47)

Quem nunca sentiu "desejo de enxames de abelha em laranjais floridos?"

3 comentários:

  1. Texto muito triste,mas verdadeiro!Quantas mulheres não existem nessa situação?Gostei da abordagem!Bjs,

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Esse é um trecho do romance As Doze Cores do Vermelho, de Helena Parente Cunha. É triste, sim, como a vida de muitas mulheres presas ainda a certas convenções, sem pensar em outras possibilidades de realização pessoal, para além do casamento. O romance foi escrito nos anos 80 e denuncia o patriarcado opressor, mesmo para aquelas que o serviam. As escritoras dos anos 60 quando escrevem nos anos 80 (Lya Luft, Sonia Coutinho, Lygia Fagundes Teles, Helena Parente Cunha, Marina Colasanti) fazem essa denuncia de forma contundente, mostrando as atrocidades que aconteciam dentro da estrutura familiar. A frase "lar doce lar" parecia contrastar com a amargura das vidas que ali viviam.

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