domingo, 31 de outubro de 2010

O CARNAVAL E AS SUBVERSÕES DE MULHERES EM AMÉLIA RODRIGUES E SONIA COUTINHO

Alguns aspectos aproximam Amélia Rodrigues e Sonia Coutinho: ambas são escritoras e baianas. Embora não fossem contemporâneas uma da outra (Amélia Rodrigues viveu no início século XX e Sonia Coutinho atualmente vive no Rio de Janeiro), as duas abordaram, em seus textos, situações envolvendo as mulheres e os códigos sociais num ambiente carnavalesco, sendo que o conto O "defeitinho" de Carmita, de Amélia Rodrigues, publicado em 1929, enfatiza a subversão da personagem Carmita por participar do carnaval e o romance Atire em Sofia, de Sonia Coutinho, publicado em 1989, mostra situações de conflito político e identitário da personagem Milena, representado-a como símbolo da resistência étnico-feminista com o objetivo de encontrar respostas para as angustias de uma jovem em busca de um espaço de pertencimento de mulher negra, baiana e de classe média alta em Salvador.

1.

Amélia Rodrigues utiliza a metáfora da máscara do carnaval e da fantasia para mostrar o duplo comportamento da personagem Carmita que tenta driblar a proibição da sociedade, representada pelo seu noivo, de participar do carnaval. O noivo de Carmita, Dr. Aguiar, jovem médico da aristocracia agrária, chega à cidade para visitar a noiva às 22 horas e não a encontra em casa. Nesse ínterim, o rapaz encontra um amigo que resolve fazer-lhe companhia e os dois passam a conversar sobre casamento, a mudança do comportamento das mulheres devido a modernização da cidade - cinema, moda, flir - e, sobretudo, sobre Carmita, tudo isso intercalado por eventuais cenas do carnaval. Durante a conversa, enquanto o noivo tecia elogios ao comportamento recatado da noiva, o amigo procurava abalar suas convicções, aludindo a uma possível postura desviante da jovem. A narrativa finaliza com a passagem de Carmita vestida de Ninfa diante do noivo que, decepcionado, termina o noivado. O médico casa-se com uma jovem vizinha da fazenda com quem constitui família.

A atitude de enfrentamento da jovem, ao participar do carnaval, parece exorcizar o "medo moral" engendrado pelas proibições autoritárias, pelos interditos e pelas punições que acorrentavam o livre prazer da personagem exercer a vontade própria, indo de encontro com o discurso oficial que restringe a atuação da mulher ao espaço familiar, privado, separando-a do espaço público, da sociabilidade, da individualidade. A subversão da foliona corresponde a ultrapassagem do temor e, portanto, dos limites impostos pela norma burguesa que se utiliza de métodos coercitivos para impor disciplina e subjugar as mulheres aos interesses ideológicos de classe, sufocando as expressões "desviantes" provenientes de uma identificação com outro código incompatível com os propósitos da moral burguesa e judaico-cristã. Sendo a lei imposta pelo medo, cabe ao carnaval afugentá-lo e instaurar, ainda que por curto período, a satisfação de viver e explorar outras situações, outros códigos, outras máscaras, outras identidades.

2.

Em Atire em Sofia, a escritora utiliza o carnaval em um contexto de afirmação identitária e étnica da personagem Milena, jovem negra de classe média alta que, ao lado do namorado rastafari Tetu, assiste ao desfile dos blocos afros "Ilê Ayiê, Araketu, Olorum Baba Mi, Male Debalê". A jovem educada nos moldes burgueses busca, ao longo da narrativa, por um lugar de pertencimento identitário e de contestação à ordem burguesa. A personagem enfrentava a sociedade através da música (inicialmente o rock e em seguida os ritmos afros); dos movimentos urbano estético-musicais punk e afro dos anos 80 e 90 que questionavam os valores burgueses e através do comportamento de subversão étnica e de gênero, desafiando a família ao namorar um jovem negro e rastafari.

O espaço do carnaval abraça simultaneamente múltiplas e diferentes imagens, linguagens que, no texto, podem ser exemplificadas pela "visão" de Jim Morrison, vocalista da banda The Doors, cantando em um trio elétrico, clamando pela desordem e pela "politização erótica" ou pela concomitância de registros diferentes através das "músicas de protesto" e de afirmação cultural dos blocos afros e da transgressão rítmica "enlouquecida" dos trios elétricos. As diferentes expressões de postura desrepressora representadas pelos gestos, pelos sons, pelas imagens desconexas, muitas vezes justapostas, provocam na personagem - lugar da resistência - a ruptura dos traumas de sua educação, desatando os nós morais oriundos das coibições que, para a mulher, tem relação com a sexualidade, duramente controlada pelos artefatos produzidos pela sociedade burguesa e judaico-cristã. O carnaval aparece como território das possibilidades, do permitido, da erótica e da política já que se instaura como voz dissonante ao discurso consensual.

O rock inscreveu-se, em um momento histórico, como linguagem de contestação produzida em contextos culturais e sociais alicerçados pelo código burguês. Os ritmos afros inscrevem [e são inscritos] na cultura baiana, sobretudo de Salvador, como linguagem de protesto e de afirmação identitária de dicção étnica de matriz africana, sobretudo nos anos 80 quando o ritmo dos tambores começaram a ganhar espaço na mídia.

3.

A narrativa produzida por Amélia Rodrigues explora as manobras produzidas pela norma social para disciplinar e controlar o comportamento da mulher ao mesmo tempo que registra a resposta da personagem traduzida na disposição em construir outro caminho - metaforizado pelo carnaval - de viver em sociedade.

No texto de Sonia Coutinho, o carnaval alcança dimensões políticas que atravessam as categorias de gênero e etnia já que é no espaço do riso que a personagem consegue transpor e experimentar livremente, numa explosão de linguagens, imagens e sons, as suas atitudes com liberdade.

Reenvios:

COUTINHO, Sonia. Atire em Sofia. Rio de janeiro: Rocco, 1989.

RODRIGUES, Amélia. Do meu archivo: contos e phantasias. Bahia: Livraria Nossa Senhora Auxiliadôra, 1929.

SOIHET, Rachel. A subversão pelo riso. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998.

Um comentário:

  1. Acabei de chegar ao seu blog,um espaço com muita densidade literária,li com muito interesse,pois a questão de gênero me é extremamente interessante.Parabéns pelo rico espaço que nos proporciona maior conhecimento ao falarmos em certos assuntos.Um grande abraço!

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