domingo, 7 de março de 2010

REFLEXÕES SOBRE LITERATURA FEMINISTA

Sempre foi muito difícil para a academia aceitar os estudos feministas como uma abordagem de análise literária. Tive a sorte de iniciar os estudos ainda na graduação quando estudei as representações de mulheres através dos autores, considerados clássicos. Os romances de José de Alencar - Lucíola, Senhora e Diva - formavam uma tríade de perfis femininos amplamente estudados por pesquisadoras de todo o Brasil. Portanto, uma das formas de estudar a mulher na literatura foi (e ainda é) através dos escritos dos homens, única voz considerada autorizada a fazer arte, até porque acreditava-se que o gênio artístico guardava uma porção divina da qual as mulheres não faziam parte, pelo menos na condição de criadoras. No máximo, chegavam a ser musas a inspirar.

A historiografia literária no Ocidente sempre foi uma atividade reconhecidamente masculina, mas isso não impediu que as mulheres escrevessem. Elas apenas não eram lidas, no entanto conseguiam furar o cerco fazendo uso dos pseudônimos. Quem poderia imaginar que George Sand era o nome de Amandine-Aurore-Lucile Dupin ou que George Eliot era o nome de Mary Ann Evans, todas escritoras do século XIX?

A crítica literária feminista percebeu que o patriarcado, com  seus valores centralizados no poder do homem, estava em toda parte, por isso ela tratou de responder como os papéis sociais desempenhados por homens e mulheres, atualizados a partir da visão burguesa, excluiam as mulheres de algumas atividades, principalmente as que cuidavam do desenvolvimento do espírito. Atividades que lhes trariam liberdade de pensar, de escolher, de discernir, que possibilitariam outros avanços a partir de uma postura independente e que certamente lhes trariam mais opções de se realizarem como pessoas, de viver as emoções, os sonhos e as possibilidades  oferecidas pela vida.  

Uma das questões iniciais formuladas pela crítica feminista era se as mulheres de fato não escreviam e, por isso, os homens eram constantemente tidos como referência literária ou se as suas produções eram boicotadas e neglicenciadas pela crítica que, por sinal, era masculina. Ora, o papel da crítica era ler os textos literários e discorrer sobre a obra, em geral atribuindo-lhes um juízo de valor. Sendo a crítica formada por homens que eram educados para considerar o engenho como atividade masculina, era previsível que eles rejeitassem as produções das mulheres. E se as mulheres não escreviam críticas, como as escritoras poderiam ser lidas e respeitadas? A saída de algumas mulheres foi escrever dentro de um modelo masculino e analisadas a partir de abordagens masculinas. Assim, algumas poucas conseguiram fazer parte das Histórias da Literatura Brasileira. Rachel de Queiroz foi uma delas. 

Atualmente a crítica feminista na literatura tem sido responsável: pelos estudos das produções de mulheres do século XIX e temos conhecimento de que elas escreviam muito; pela reedição de livros esgotados e raros; por uma crítica que possa dar conta de explicar as questões do universo das mulheres, enfim, tem sido responsável por tornar o esforço de muitas mulheres reconhecido por pessoas posteriores à sua época. Apesar de elas não estarem mais vivas para ver que seus dias de dor e solidão se transformaram em momentos de prazer e de novos caminhos para outras mulheres, vale-nos agradecer imensamente a essas persistentes mulheres de outrora por elas terem insistido. Falta-nos infelizmente tornar esses textos mais acessíveis para os jovens e sensibilizá-los para a importância deles na cultura de um país.  

Para a nossa alegria, temos o privilégio de ler textos de escritoras contemporâneas como Myriam Fraga, Sonia Coutinho, Helena Parente Cunha, Lya Luft, Marina Colasanti, Lygia Fagundes Telles, Márcia Denser e tantas outras.

As imagens são (de cima para baixo): Nísia Floresta, Amélia Rodrigues e Josefina Álvares de Azevedo.

5 comentários:

  1. Entre os conceitos explicados dois chamaram em particular a minha atenção: o facto que durante muitos séculos as mulherem não tivessem tido voz no âmbito literário e o seu papel era o de inspirar passivamente o homem, e o facto que embora muitas mulheres escrevessem não eram consideradas pela crítica literária porque só os homens tomavam parte nela.
    Ambos estes testemumhos de discriminação da mulher na literatura já eram denunciados por algumas escritoras portuguesas (e não só).
    O primeiro conceito lembra-me em particular dum texto intitulado "O corpo" que se acha no livro das "três marias" "Novas cartas portuguesas", onde através da descrição dum corpo nu meio adormecido, as autoras conseguem revolucionar esta ideia de identidade feminina passiva e vulnerável de “musa inspiratriz”, atribuindo esta imagem convencional e estereotipada da mulher à um homem. Acho esta “invenção literária” de subversão total dos cânones muito original e genial.
    O outro conceito da impossibilidade de acesso ao âmbito literário por parte das mulheres lembra-me de um conto de Irene Lisboa intitulado “O dito”, que fala exactamente da vontade de uma jovem escritora de emergir e das dificuldades de publicação do seu livro causadas por um crítico literário que não a toma em consideração.
    Apesar destes textos terem sido escritos em anos diferentes, nota-se que o objectivo principal da mulher escritora é aquilo de desconstruir o papel da mulher na esfera pública e/ou na esfera privada, para anular as diferenças entre os géneros.
    Acho todavía que as autoras levem quase sempre consigo traços “femininos” que distinguem a sua literatura e que rendem os seus textos peculiares.
    É verdade, como tu dizes que estas autoras têm dado ”momentos de prazer e novos caminhos para outras mulheres”, e espero que continuem ser um modelo também para as mulheres que têm esquecido o que significa ser mulher hoje que os tempos têm mudado. Para as mulheres que, em vez de lutar contra os novos estereótipos de ”mulher objecto” baseados na ideia de corpo feminino como ponto de atração pelo homens e não como expressão outra da própria identidade, estão a jogar exactamente o mesmo jogo dos media e da sociedade que as querem assim.

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  2. Excelente post Lucia! Realmente faltou a essas mulheres uma critica imparcial e que compreendesse o universo feminino. Quando estudo as obras para postar no meu blog, noto que as mulheres que pecam, isto é, as personagens femininas transgressoras, quase sempre as heroínas, são apresentadas de forma diferente quando construídas sob o olhar feminino. Sob o olhar masculino, a personagem feminina é, quase sempre, transgressora porque fraqueja em algum ponto, sendo este ponto algum pilar fundamental da cultura patriarcal. Sob o olhar feminino, a abordagem é outra: embora as heroínas invariavelmente transgridam a moral vigente, a mulher-escritora procura realçar, ainda que de forma velada, a coragem e a força dessas personagens ao assumirem a propria transgressão e suportarem suas consequencias. De uma forma geral, o que diferencia a escrita masculina da feminina é a perspectiva em relação à conduta da mulher, ao que é certo ou errado para o feminino no contexto social.
    Mais uma vez, parabéns pelo post.

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  3. Existem muitas questões que a crítica literária feminista tenta abordar: se existe uma escrita feminina (ou seria feminista?)e se admitirmos que existe não estaríamos perigosamente reconhecendo algo que sempre foi questionado: o essencialismo? Ou teríamos uma escrita feminista (ou seria feminina?)que materializa a consciência política e ideológica sobre a condição da mulher. São questões que vira e mexe estão na ordem do dia no debate feminista.

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  4. Essas são boas perguntas: existe um estilo de escrita que é próprio do genero feminino, ou um estilo de escrita que é próprio do sexo feminino? Será que é possivel dizer que são dois estilos? Até momento, e de todos os livros que eu li, percebo diferenças de abordagem e de perspectiva, para defender determinada corrente de pensamento. Mas, basicamente, a estrutura narrativa, os temas, e tudo mais que constituem um romance seguem padrões similares. Então não saberia dizer se a mulher tem uma forma propria de escrever - apenas que a ótica feminina para a narrativa é diferente da masculina, incrementa valores proprios do ponto de vista feminino, como também suas bandeiras. Mas, sempre pode haver algo que não estou enxergando ou sempre haverá exemplos de narrativa feminina(-ista) que eu ainda não li. A discussão e muito boa, continuem...

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  5. Acredito que as experiências femininas(condicionadas pelo discurso misógino, principalmente do século XIX) sãodiferenciadas das experiências femininas. Notemos o binômio público/privado, cultura/natureza, enquanto constructos discursivos de uma imposição masculina, logo, diante disso, é possivel sugerir que o aspecto cultural dos discursos que prendiam a mulher á prisão de casa e á prisão textual, obrigou, necessariamente, queas mulheres escrevessem, por exemplo,sobre temasrelacionados ao lar. Então, Falar de uma escrita feminina, é falar, sobrtetudo, subre uma condição história e cultural, ou seja, é preciso historicisar a mulher, uma vez que "não se nasce mulher, torna-se mulher"
    Alex Guimarães (mestrando em teoria Literária e Crítica da Cultura)
    lexhisto@yahoo.com.br

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