E me corto ao meio e me solto
de mim, duplo coração:
a que vive, a que narra,
a que se debate e a que voa
- na loucura que redime
da lucidez. (Lya Luft)
A publicação da escritora gaúcha Lya Luft, intitulada Histórias do Tempo, ed. Mandarim, 2000, presenteia o leitor com histórias permeadas de clarividência, poesia e memória, divididas estruturalmente em onze partes cada uma introduzida por um poema. A voz que narra, vai se revelando paulatinamente como escritora, poeta, ensaísta, discutindo questões como o processo da escrita, a relação entre escrita e experiência social e o pacto com o leitor - aquele com quem a escritora estabelece uma “aventura a dois”.
A narradora evidencia alguns componentes que se entrecruzarão ao longo da narrativa - memória, história, estrutura e relações sociais significadas através da ótica da mulher - apontando para o processo da escrita enquanto registro de um legado sócio-cultural gendrado. Estes aspectos tecidos na narrativa revelam o lugar de onde o escritor/narrador fala (seja ficcional ou social), expondo a sua visão de mundo, suas reflexões, balanços e questionamentos, colocando-se em constante diálogo com o leitor, exigindo dele, muitas vezes, uma postura auto-reflexiva diante de questões sociais, existenciais e relacionais. Histórias do Tempo fala de máscaras, infância, resistências, relacionamentos de mulheres consigo mesmas e com o(s) outro(s), geração de 60, família, vida, morte, amor e violência urbana, dosando linguagem poética e ensaística, através de um aguçado olhar feminino (eu diria feminista) crítico, representado pela voz narrativa, que, na maturidade, faz um retrospecto de sua vida, das relações sociais burguesas, percebendo, através de uma atitude de auto-descoberta, a dupla máscara que envolve a mulher. No romance, a narradora se alterna em duas vozes, ora Medésima “a mulher cotidiana”, a que se movimenta no código e ora Altéria, a mulher oculta “o desencontro o desdito o transverso o avesso...”
A leveza com que a voz narrativa percebe a presença de “duas mulheres” em si mesma, que se movimentam distintamente na sociedade, rompe com a estrutura do pensamento masculino Ocidental pautado na oposição e repulsa das diferenças. A narradora mostra que as negociações são possíveis e necessárias para que as diferenças possam se encontrar sem mutilações. Medésima e Altéria transitam em espaços diferentes, mas exercitam entre si rituais de delicadeza para chegarem ao equilíbrio. No texto, a problemática dos relacionamentos resulta do embrutecimento dos hábitos cotidianos, da falta de gentilezas que corroem os elos das relações e que acabam transformando as pessoas em indivíduos amargos e solitários.
Porque temos de estar sempre alertas, preparados, prontos para a invasão: a hora em que – às vezes sem me dar conta – eu quero impor a quem amo as minhas verdades ou o que penso que sejam, e declará-las território meu (...) A partir desse momento, sendo ‘a propriedade’ um do outro, o encantamento – com o respeito – começa a morrer.
O romance de Lya Luft nos convida a uma viagem pelos recantos da memória, estimulando-nos a reflexão e, mais precisamente, conduzindo-nos a pensar na Medésima e Altéria que habitam em nós. As perguntas que aparecem no texto levam o/a leitor/a a refletir as suas práticas cotidianas e os códigos que regem a sociedade com seus papéis definidos e fixos para homens e mulheres. A narradora enfoca o lugar da família como espaço institucionalizado, onde as relações de gênero são construídas e experenciadas, mas também onde se exercita sutis e obstinadas resistências. A tensão entre as limitações internalizadas e o desejo de extrapolar as cercas que delimitam e controlam as nossas atitudes é que faz Histórias do Tempo um romance inquisitivo e instigante ancorado numa tessitura fluida e poética.
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