Sônia Coutinho, Helena Parente Cunha e Lya Luft são escritoras de uma mesma geração, a de 60. As duas primeiras são da Bahia - sendo que Coutinho é da cidade de Itabuna e Cunha é de Salvador - e a última, Lya Luft, é de Santa Cruz, cidade do interior do Rio Grande do Sul. São mulheres oriundas da classe média alta e que foram educadas, como tantas outras, para constituir família, exercendo os papéis de esposas e mães. Elas começam a publicar seus romances nos anos 80, quando já se encontravam na maturidade e, também, quando o Brasil passava por uma transformação política, de abertura, após 20 anos de ditadura militar.
Atire em Sofia , 1989, Mulher no Espelho , 1985 e Reunião de Família, 1982, trazem reflexões de personagens que falam de suas experiências como mães e esposas, mas, principalmente, do choque entre os papéis sociais para o qual elas foram destinadas desde jovens e as aspirações enquanto mulher. O eixo de discussão dos romances recai em um mesmo objeto: o espelho – aliás metáfora presente nas três narrativas – que remete à busca das personagens por sua identidade, mulheres empenhadas em realizar uma aventura a partir de um percurso memorialístico para decobrir o que as impediu de viver experiências e emoções que não fossem as autorizadas pela sociedade ou mesmo o que as mantêm atreladas a um passado.
O fato de reunir simbolicamente idéias de desdobramentos e conhecimento de si, torna o espelho uma metáfora freqüente na produção de autoria feminina e basilar para a crítica feminista, já que o seu sentido está relacionado diretamente à discussão sobre a identidade feminina, mostrando - através da reflexão das personagens, não para encontrar um igual, mas, ao contrário, para defrontar-se com o outro – como o constructo androcêntrico da sociedade ocidental é violento e inadequado à realização da mulher: “o espelho não tem como função refletir uma imagem; tornando-se a alma um espelho perfeito, ela participa da imagem e, através dessa participação, passa por uma transformação. Existe, portanto, uma configuração entre o sujeito contemplado e o espelho que contempla.” (Lúcia Leiro)
Em Atire em Sofia, 1989, a passagem do espelho mostra a personagem empreendendo uma viagem memorialística em direção a si mesma. Atravessar o espelho, como Alice, conduz a personagem a uma aventura de auto-conhecimento, no intuito de encontrar respostas para a sua exclusão/invisibilidade. À medida em que a personagem vai encontrando sentido para a sua existência, a imagem vai sendo recuperada até obter a visão de um “rosto pálido e envelhecido, um rosto afivelado em cima de muitos outros, como a penúltima máscara, um rosto qualquer, enfim, mas é o seu”.
No romance Mulher no Espelho, 1985, a imagem especular aparece também como discussão em torno da identidade da mulher. Olhar o espelho consiste em executar uma viagem introspectiva na tentativa de encontrar, nesta mirada, um sentido para sua própria vida. A personagem do livro de Helena Parente Cunha recorre à memória em busca de sua identidade, através de sua própria escuta, tornando o processo de auto-descoberta uma experiência fascinante e, ao mesmo tempo, extremamente violenta: “tenho o que dizer, pois vou dizer-me a mim mesma, como qualquer pessoa que se põe diante da memória ou dos espelhos”. O espelho inteiro remete à uma pretensa unidade do sujeito instabilizada e questionada ao longo do romance através dos embates da personagem. A imagem estilhaçada refletida nos pedaços do espelho e presente no final da narrativa, aponta para a existência de várias vozes, que se desdobram e se multiplicam: mulheres que habitam mulheres.
Assim como as duas narrativas anteriores, o romance Reunião de Família, 1982, de Lya Luft, apresenta o espelho que reflete o outro lado que não se mostra, ao mesmo tempo que estabelece um elo de reflexão com a personagem, descrita como uma mulher casada, mãe, dona-de-casa e que tem a sua sexualidade satisfatoriamente vivenciada com o amante, mas ‘deve’ ser ocultado da sociedade. Ao olhar o espelho, a personagem dialoga consigo mesma, percebendo na fissura da imagem, o seu duplo: “falo e já me arrependo. Espio rapidamente meu reflexo no espelho, aquela que não é a pacata dona-de-casa, é uma mulher má, cara cortada ao meio pela rachadura do vidro.”
O espelho, como objeto metafórico, permeia toda a narrativa de Luft, assim como acontece com os textos de Sônia Coutinho e Helena Parente Cunha, para discutir o percurso das personagens na busca de entenderem a si mesmas com seus rostos partidos, estilhaçados e afivelados. Mulheres que traçaram seus próprios caminhos na tentativa de encontrar alternativas e saídas para viverem uma vida mais humana e mais plena em uma sociedade patriarcal que só as reconhecia nos papéis de mães e esposas.
Nos três romances, a busca de identidade engendrada pelas personagens encontra resistência devido aos papéis que elas exercem na sociedade, fazendo com que, algumas vezes, elas rompam com o código e sofram a angústia da culpa ou encontrem, sem violar o código, formas de não permitir que o rosto encoberto sucumba às máscaras do cotidiano.
Nenhum comentário:
Postar um comentário