sexta-feira, 30 de outubro de 2009

A POESIA DE HELENA PARENTE CUNHA

Helena Parente Cunha é bastante conhecida por sua prosa - Mulher no Espelho, Cem Mentiras de Verdade, As Doze Cores do Vermelho, Os Provisórios, Claras Manhãs de Barra Clara - narrativas que já lhe trouxeram premiações. No entanto, trago hoje uma poesia publicada em seu livro Além de Estar, lançado em 2000, pela Fundação Cultural do Estado da Bahia e Editora Imago. O poema recebeu o título de Verdade.

no desmentir
de cada mito
me tomba um véu

no desencontro
de cada aurora
rompo um pedaço

no que refaço
cada verdade
mais me desfaço.

Esse poema me chamou a atenção pelo seu propósito desconstrucionista e desmitificador. Longe de aceitar a identidade como algo acabado, fixo, a voz que enuncia se apresenta reflexiva e consciente do jogo de mentiras e verdades, do mascaramento, por meio do qual as pessoas vivem socialmente. O véu, símbolo feminino, usado para ocultar a face da mulher, portanto a sua identidade, com o passar do tempo vai sendo retirado, levando a mulher a se defrontar com a verdade. Mas o que é a verdade? A verdade e a mentira não são feitas da mesma substância? A diferença, a meu ver, é que a voz feminina constrói para si aquilo que ela considera como verdade sobre ela mesma. A mentira é o que foi dito sobre a mulher e que ela rejeita, tem uma relação de "desencontro". A verdade, ao contrário, é tudo aquilo que ela define para si mesma como pertencimento e por meio da qual ela se afirma.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

A DAMA E O UNICÓRNIO


"Desenho o teu perfil
Como um bordado;
Matiz e labirinto.

Uma anca abaulada,
Um pé suspenso
E a cabeça
De encantado.

Passeias nos meus sonhos,
Nos meus bosques
De sombra e solidão.

Solitário também
E assustado:
Tão dedicado risco
A Senhora e o Unicórnio: "A visão
- Elfo e onagro. Fonte: wikipédia

Nunca virá a mim.
Por mais que espreites
(E te espreite)
Não virás.

Desejas no entanto
Meu regaço.

Mas nunca o terei nos braços.

... Nunca o doce
Calor de seu pelo,
Nunca o suave
Parafuso do chifre...

- Que linha furiosa nos separa?

Neste jogo de espelhos,
Divididos,
Nos buscamos em vão.

Não me escutas,
Nem voltas a cabeça.

Nem eu atiro o laço."

(Do livro FEMINA, 1996)


Quando li A Dama e o Unicórnio pela primeira vez estava no curso de especialização da UFBA e iniciando com mais profundidade os meus estudos feministas acerca das questões de gênero. Imediatamente elegi esse poema de Myriam Fraga como um dos mais "gendrados" de sua coletânea. O verso "-Que linha furiosa nos separa" mostra a grande separação que a cultura nos legou entre os pólos diferentes, o feminino e o masculino ou o homem e a mulher, num jogo binário e oposicional que sustentou (e tem sustentado) as práticas sociais no ocidente, levando as pessoas, mulheres e homens, a se rivalizarem ao invés de se perceberem, em suas diferenças, como apenas diversos.


No poema, o olhar reciproco, ou melhor o espreitar recíproco, traduz esse interesse mútuo, mas que se perdeu ou tem se perdido no estrabismo que embaça, produz o estranhamento mútuo. Espreitar significa observar às ocultas, prescrutar, sondar, observar atentamente e, por mais que as duas partes assim se comportem um em relação ao outro, uma "linha furiosa", forte e violenta, impede que dois universos distintos se vejam, se aproximem, se percebam e se entendam. O ocidente criou esse abismo dos gêneros através de diferentes recursos. Aqui a poesia de Myruam Fraga espreita o mito, o código literário ocidental, indaga-o e lança para o leitor a tarefa de pensar: "Que linha furiosa nos separa?"


A Dama e o Unicórnio nos lança ao mito dos encontros impossiveis, pois reza a lenda que o animal só se curvaria diante de uma virgem que em seu colo, ao adormecer, lhe tiraria o chifre. Isso significa que para que houvesse um encontro, um deles teria de perder a força. A narrativa ocidental mítica mostra que a força indomável é aplacada pelo gesto calmo da mulher que neutraliza a violência, representada simbolicamente pelo chifre quando ela o retira, para enfim poderem estar em equilíbrio. O ocidente distorce ainda o mito ao mostrar uma leitura invertida, mostrando que a mulher ao possuir o chifre passa a dominar o homem.


A poesia de Myriam Fraga questiona essas leituras hierárquicas nas relações e propõe uma reflexão sobre a ideologia que tem sustentado as relações desiguais de gênero que separa violentamente mulheres e homens, o feminino e o masculino, e, sobretudo, conferindo poderes a um.
Fonte: A imagem intitula-se "A Senhora e o Unicórnio - A visão"